O ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos, está sendo brutalmente cancelado por ter cometido, supostamente, os crimes de assédio moral e assédio sexual.
O Brasil é uma democracia liberal, aquele regime em que todos são iguais politicamente, todos são inocentes até prova em contrário, todos têm direito a defesa e a um julgamento justo. Isso é o que diz a lei.
A lei é irrelevante para o identitarismo militante, que entende que o integrante do grupo dominante é sempre culpado diante do integrante do grupo minoritário. Se um homem (ou branco, ou heterossexual, ou rico) é acusado de um crime contra uma mulher (ou negro, ou LGBTQIA+, ou pobre), a acusação é verdadeira por definição. Logo, Silvio Almeida deve ser cancelado e destruído.
Mesmo assim, o caso do ministro Silvio Almeida estabelece um novo patamar na cultura do cancelamento: agora não é preciso haver sequer acusador. Não se sabe bem o que o ministro fez, nem quem o acusa, nem quem foi (ou foram) a(s) vítimas, nem se houve testemunha. (Se você pensou em O Processo, de Franz Kafka, não pensou errado.)
Afirma-se que uma das vítimas seria a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, e o fato de Janja ter publicado uma foto sua com a ministra parece ratificar a hipótese. Mas a suposta vítima, não se sabe por que, não confirma nem desmente (tem medo de quê?). De modo que fica a palavra do ministro contra a palavra de não se sabe quem.
É perfeitamente possível que o ministro seja culpado. Mas também é perfeitamente possível que se trate de calúnia. O ministério é um lugar onde há muito ciúme e muita disputa por espaço e poder, e a cultura do cancelamento estimula a calúnia. Quando a acusação é de assédio, a calúnia quase sempre dá certo: a destruição da reputação da vítima é garantida e a impunidade é certa (é virtualmente impossível provar que a acusação seja mentirosa).
Ninguém sabe qual é a verdade, e talvez nunca venhamos a saber. Mas duas coisas nós sabemos:
1) o dano para o ministro Silvio Almeida está feito.
2) não é possível manter uma sociedade justa e democrática enquanto a cultura do cancelamento persistir.
Um aspecto curioso e meio transversal: Silvio Almeida e Anielle Franco são negros, pertencentes ao mesmo grupo minoritário. A “interseccionalidade”, conceito caro ao identitarismo, sustenta que os vários tipos de opressão (racismo, machismo, homofobia etc.) não agem independentemente uns dos outros, mas se inter-relacionam, criando um sistema de opressão cruzada. Por esse motivo, todos os grupos oprimidos devem se alinhar e apoiar uns aos outros (daí expressões como “ninguém solta a mão de ninguém”). O episódio demonstra que, quando há interesses pessoais em jogo, não há interseccionalidade que resista.
(Por Ricardo Rangel em 06/09/2024)