Houve tempo em que, vistas daqui de fora, as diferenças entre os partidos Democrata e Republicano eram quase indiscerníveis. Para a esquerda, tanto fazia um partido ou outro no poder em Washington; os EUA continuariam os imperialistas e os racistas de sempre. Quem te viu e quem te vê, América! A divisão social e política desabrochou, tomou corpo, aprofundou-se e atingiu um ponto alto na eleição deste ano. Uma perversa conclusão, em meio às névoas deste pós-eleitoral de república bananeira, é que a fratura entre as partes, em vez de acalmar, pode se tornar até mais amarga.
Os dois lados já estavam a caminho de não mais se suportar, mas faltava a Presidência de um Donald Trump para até mesmo conferir à guerra civil o estatuto de eventualidade cogitável. “Nos EUA, a conversa volta-se para algo não falado por 150 anos: guerra civil”, era o título de reportagem do Washington Post no ano passado. O economista Paul Krugman escreveu que o presidente Donald Trump “parece muito perto de tentar incitar uma guerra civil”. A guerra civil do século XIX, também chamada de Guerra de Secessão, teve a vantagem de delimitar com clareza geográfica (Norte x Sul) onde se daria a secessão. O inimigo agora, para piorar, pode estar na casa ao lado, ou até dentro de casa.
O petulante fanfarrão de nome Donald Trump ocupa o epicentro do terremoto que abala os Estados Unidos e espalha tremores mundo afora. A eleição foi sobre ele. Ele está no centro de tudo. Tudo gira em torno dos arroubos, das fixações e das loucuras desse bufão cuja simples presença no picadeiro ameaça pôr fogo no circo. Ponto alto de seu repertório são as mentiras. Disse ele, em comício no estado do Arizona, nos dias finais da campanha: “Na Califórnia eles usam uma máscara especial. Não se pode, em nenhuma circunstância, tirá-la. Você tem de comer através da máscara. É um mecanismo muito complexo”. Nunca existiu tal máscara. Era o mentiroso velho de guerra pespegando mais uma. As absurdas jactâncias fazem par com as mentiras. “Sou o presidente que mais fez pelos negros, com a possível exceção de Abraham Lincoln”, disse, repetidas vezes. No primeiro debate com Joe Biden, presenteou-nos com a performance do bufão quando possuído pelo demônio. Faltou naquela noite aparecer a polícia e retirá-lo do palco. Ou um enfermeiro, com uma providencial camisa de força.
“É estonteante marca dos tempos que correm Trump fazer sucesso junto a tanta gente”
Ainda não se encontrou a palavra justa para classificar a direita representada por Trump. Dizer que é um movimento de conservadores ofende a digna e milenar condição de conservador. Conservadora é Angela Merkel, a maior estadista destes tempos. “Populistas” também não serve; já de si imprecisa, a etiqueta tem sido abusivamente aplicada a uma barafunda de espécimes diversos. “Reacionários” cabe-lhes, mas ainda não diz tudo, e “fascistas” tem tal peso que não se deve desperdiçá-la com trêfega sem-cerimônia, como faz a esquerda. O historiador argentino Federico Finchelstein sugere “pós-fascistas”. Em entrevista à Folha de S.Paulo, Finchelstein, professor na faculdade The New School, em Nova York, e estudioso de regimes de força, elencou quatro elementos que caracterizariam o fascismo: (1) ditadura; (2) xenofobia/racismo; (3) violência/militarismo; e (4) propaganda mentirosa. O “pós-fascismo” seria a reinvenção do fascismo sem a ditadura.
Da propaganda mentirosa faz parte a glorificação do líder. Em Trump a glorificação começa com a autoglorificação, e a autoglorificação começa com o topete, que não se desfaz nem na mais furiosa ventania. Em ocasiões recentes, duas vezes ele se entregou a ensaios para transfigurar-se em estátua. Primeiro quando, durante as manifestações antirracistas, saiu da Casa Branca, atravessou a rua e posou durante infinitos segundos em frente a uma igreja, uma Bíblia na mão. Segundo e mais impressionante (e ridículo) quando, ao voltar da internação em hospital, por ter contraído Covid-19, se demorou na escadaria da Casa Branca, a fazer continência para o helicóptero presidencial, que acabara de trazê-lo. Trump raramente sorri e nunca ri. Também faz parte do treino para estátua. Heróis têm cara séria.
A despeito disso tudo, ou talvez por causa disso tudo, o bufão tem força. Provou-o na eleição, que antes se previa desabasse sobre ele com arrasadora desaprovação. Suas investidas contra o processo eleitoral configuram uma tentativa de desconstrução da democracia. Conseguindo-o, nada mais faltaria na definição de fascismo do professor Finchelstein. É estonteante característica dos tempos que correm um tipo desses fazer sucesso junto a tanta gente.
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Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712