O triste retrato do Brasil de Jair Bolsonaro, o soco no nosso estômago ao retratar um país devastado por um exército de ocupação extremista, violento, racista, preconceituoso, misógino, machista e homofóbico, a beleza incômoda de um documentário que une a história brasileira recente com a vida pessoal dos seus criadores, tudo isso terá um final mais solar em breve. Quebrando Mitos, este retrato em questão realizado por Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira, foi remontado depois da eleição que tirou Bolsonaro do poder. E assim o desalento nervoso exposto na primeira versão – lançada em setembro, a 15 dias da eleição, e com mais de 1 milhão de acessos no YouTube – deu mais espaço para a esperança. A dupla, um casal gay assustado, mas corajoso e repleto de firmeza e ternura, está agora buscando um festival para reestreá-lo.
Será uma nova versão mais luminosa e mais esperançosa, mas preservando a contundência ao tocar nas feridas deixadas pelo que Andrade chamou de “masculinidade catastrófica e frágil” de Bolsonaro. Méritos que encheram os olhos de gente grande. O cineasta Jorge Furtado classificou Quebrando Mitos de “o melhor e mais importante filme brasileiro das últimas décadas”, não apenas por ser um filme “brilhantemente realizado”, mas sobretudo por ser “um documento fundamental para entender o Brasil”. Os autores do documentário, claro, ficam embevecidos até hoje ao reler o elogio do cineasta – elogio que se estendeu à brilhante e generosa resenha de Fabio Altman nesta VEJA.
Hoje menor depois dos meses de férias em Orlando após direta e indiretamente estimular uma massa de golpistas e vândalos que invadiram os Três Poderes em 8 de janeiro, Bolsonaro foi derrotado numa disputa renhida em 31 outubro de 2022, da qual terminou a noite com meros 2,1 milhões de votos a menos, ou menos de 2% dos votos válidos, e sem aceitar o resultado, como fazem líderes democratas. Para aquela eleição, contou Fernando Grostein Andrade à coluna, os criadores de Quebrando Mitos convidaram pessoas a filmarem com seu celular. De Brasília ao Rio de Janeiro, de São Paulo à Amazônia, eleitores registraram a eleição, enquanto Andrade e Siqueira, eles próprios, filmaram o voto em Los Angeles, onde vivem. Num dos registros aparecem dois eleitores bolsonaristas vestindo uma camisa que estampava “Cuscuz Klan”, mistura do prato clássico brasileiro com a Ku Klux Klan, a organização terrorista que unia ideias reacionárias e extremistas como a supremacia branca.
Ao se verem filmados, perseguiram e ameaçaram Andrade. “Disseram que iam me dar um tiro”, lembra o cineasta, revivendo o tipo de ameaça que o fez o deixar o Brasil. “Há muitos anos tenho sido alvo de ataques e mensagens de ódio, mas a escalada das ameaças chegou ao ápice em 2018, meses antes das eleições presidenciais”, contou Andrade num texto publicado na revista Piauí. Naquele ano, via Facebook, chegou-lhe o seguinte recado: ele devia parar de falar de política, caso contrário o seu velório precisaria ser o com caixão lacrado. “A mensagem não dizia de que modo me matariam, mas o recado era bem claro. Fiquei apavorado. Não era uma mensagem isolada: somava-se a uma longa série de acusações, perseguições e apagamentos.”
Era o lado perverso das consequências de um documentário que lhe deu fama – para o bem e para o mal: Quebrando o Tabu, lançado em 2011, no qual buscou aprofundar o debate se usuários de drogas não deveriam ser tratados pela medicina, em vez de punidos e presos. Do documentário, Andrade criou uma plataforma de mesmo nome, movimento que repetiu agora com Quebrando Mitos – pode ser acessada aqui – e um perfil no instagram que, como ele diz, “ajuda a fomentar uma comunidade discutindo as questões da masculinidade catastrófica, da arte como forma de resistência.”
Quebrando conjuga sua vida pessoal com a aridez que foram os anos Bolsonaro para o grupo LGBTQIA+ e os alvos habituais do bolsonarismo: o meio ambiente e os ambientalistas; as pessoas negras, pobres e vulnerabilizadas em geral; e quem mais pensou e pensa diferente. Está tudo lá: do assassinato da vereadora Marielle Franco ao cenário macabro das covas rasas abertas nos cemitérios da Amazônia; da floresta em chamas com a cumplicidade de um governo que liberou as boiadas aos desafios presidenciais às instituições e em especial à Justiça e à imprensa; das declarações de incitação ao ódio e ao preconceito, emitidas pelo autodeclarado “imbrochável e incomível”, à repressão ora explícita, ora silenciosa imposta a mulheres, negros, gays, lésbicas, transexuais e travestis.
Entre o coletivo e o individual, o filme dos dois Fernandos narra, por exemplo, que Andrade foi estuprado duas vezes e forçado a perder uma virgindade com uma coelhinha da Playboy aos 17 anos de idade (seu pai, Mario de Andrade, foi editor da versão brasileira da revista). “No filme tomei a decisão de abrir minha vida e revelar minhas vulnerabilidades com o objetivo de despertar a discussão entre gays e seus familiares”, contou Andrade ao lançar o filme. “A homofobia silencia, apaga e mata. O amor, o acolhimento nos fazem mais fortes para enfrentar qualquer tempestade, que, assim como esse governo, vai passar. E voltar ao Brasil sem me sentir ameaçado.”
Pois passou, em parte, o que lhe permitiu retomar o projeto com uma montagem diferente, que atende ao chamado com o fim do governo Bolsonaro e o início do governo Lula. O maior otimismo lhe reforça a ideia do que chama de “uma crítica construtiva à sociedade brasileira”. Diz ele à coluna: “Muito se diz que o PT não pode nessa volta ao governo repetir os mesmos erros. Concordo. Mas acho que vale pensar também nos muitos erros da sociedade e especialmente da imprensa e de seus anunciantes”. Andrade ecoa assim o que o Quebrando Mitos, a plataforma, vem tentando chamar a atenção, assim como organizações como o Sleeping Giants Brasil, na denúncia e no alerta do papel de anunciantes ao financiar sites que estimulam a desinformação, fake news e discursos de ódio.
Se deixou o Brasil por medo, se teve medo na véspera de lançar Quebrando Mitos, Fernando Grostein Andrade sempre enxergou esse sentimento de uma forma especial: “A gente pode tomar antidepressivo, se for necessário e receitado pelo médico, mas não pode viver à base dele. Posso ter medo das ferramentas de inteligência artificial mas posso usá-las a meu favor. O medo acaba sendo a ferramenta dos oportunistas. Querem banir livros de educação sexual de escolas, mas não querem banir armas. Enquanto livros de educação sexual salvam vidas, aumentou o número de ataque nas escolas. Para mim, o medo nos ajuda a nos prepararmos e nos defendermos. O medo não pode ser paralisante, e sim um impulso para luta e resistência”.
O medo pode ser criador, portanto. Com política e também com a arte. Depois de três anos trabalhando nas imagens da masculinidade catastrófica de Bolsonaro, a válvula de escape do casal foi a música. Ambos criaram um duo musical, o fes2, aproveitando que s2 significa coração na internet. Estão produzindo um álbum, e a primeira música, composição de Fernando Siqueira, está disponível no Spotify. É uma canção sobre exílio, chamada Califórnia. De uma lindeza sem par.