“Caro Sérgio, parece-me haver algo de estranho em toda prosa em que é empregado ‘de’ em vez de ‘da’ ou ‘do’. Por exemplo, no tempo ‘dos’ nossos avós, que são ‘os’ nossos, e não ‘e’ nossos, usava-se sempre artigo definido feminino (a) ou masculino (o) para construções do tipo: isso é coisa ‘da’ nossa cultura, em vez de isso é coisa ‘de’ nossa cultura, porque é ‘a’ nossa, e não ‘e’ nossa. E por aí vai. É mesmo possível usar abobrinhas em receitas à base de bananas?” (Sival Moreira)
Embora confunda, ela sim, abobrinhas com bananas, a consulta de Sival aponta para um traço interessante da nossa língua – mas eu também poderia escrever “de nossa língua” – ao qual se dá pouca atenção: os pronomes possessivos que vêm antes de substantivos podem ser precedidos ou não de artigo definido.
O tempo dos nossos avós é também o tempo de nossos avós – tanto faz. Na primeira construção, há a contração da preposição “de” com um artigo definido. Na segunda, a preposição “de” vem sozinha (nada a ver com um absurdo “e nossos avós”, que fique claro).
A lógica é a mesma que nos permite escrever, por exemplo, “a minha vida dá um livro”, com artigo, ou “minha vida dá um livro”, sem artigo. É comum que o mesmo autor, muitas vezes no mesmo texto, misture as duas formas guiado apenas pelo ouvido – ou pela decisão, consciente ou não, de dosar o tom de proximidade e calor que o uso do artigo definido normalmente confere à frase.
Mas haverá alguma sutil razão gramatical para que se empregue ora uma construção, ora outra? Se um dia houve, faz tempo que se perdeu. Em sua “Gramática histórica”, Said Ali supõe que os primeiros casos de anteposição do artigo ao pronome possessivo buscavam “chamar a atenção antes para o possuidor do que para a coisa possuída”, num “sentimento de linguagem que se foi esquecendo com o tempo”.
Na curiosa contabilidade do mesmo gramático, esse artigo anteposto ao pronome, que era raro no português antigo, popularizou-se no século 16 com Camões, que o empregava em 30% das ocorrências de possessivo. No século 17, com o padre Antônio Vieira, a conta chegou a 70%, para culminar em mais de 90% na obra de Alexandre Herculano, no século 19. Talvez essa goleada seja suficiente para atestar uma vocação da língua, mas não parece ser menos verdadeiro que, de um século para cá, o desenvolvimento da imprensa e uma preocupação geral com a concisão têm contribuído para equilibrar o jogo.
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