A visão otimista sobre o Apocalipse de séries como ‘Estação Onze’
Novas atrações da TV abraçam a ideia de que, mesmo no caos, a vida e as pessoas valem a pena
São muitos os fantasmas, reais e alegóricos, que assombram Hamlet, o príncipe que dá nome à monumental peça de Shakespeare. Com a morte precoce do pai, o personagem encara uma ruptura da ordem estabelecida: sua mãe se casa com seu tio, que assume o posto de rei, adiando a chegada de Hamlet ao trono. O jogo político e a paparicação no palácio mudam. Pior de tudo: ele descobre que foi o tio quem assassinou seu pai para tomar a coroa. Hamlet está em luto, desiludido e sem perspectiva. Seu mundo desabou de forma abrupta — e os membros da Sinfonia Itinerante entendem bem como o príncipe se sente. A trupe de teatro shakespeariana da minissérie Estação Onze, da HBO Max, encena Hamlet com o vigor e a entrega de quem também viu sua realidade ruir, só que concretamente: vinte anos se passaram desde que 99% dos seres humanos do planeta morreram em questão de horas, vítimas de um vírus incontrolável que deu fim à civilização. Com o intuito de recuperar as marcas que definem uma sociedade, o grupo abraça a missão de manter a arte viva — em especial, a obra do maior dramaturgo da história. O lema da trupe é autoexplicativo: “Porque sobreviver não é suficiente”.
Séries que imaginam o Apocalipse compõem um filão mais e mais prolífico à medida que o século XXI avança com suas incertezas e angústias, da crise das democracias ao caos da pandemia. Dentre as inúmeras visões aterradoras do futuro disponíveis na TV e no streaming, Estação Onze surge como espécime peculiar. Ela propõe uma perspectiva do fim dos tempos radicalmente diferente da propalada por uma The Walking Dead, por exemplo. Ao longo de onze temporadas, a trama distópica sobre zumbis explorou com intensidade o substrato pessimista que costuma embalar essas produções. No mundo dilacerado de The Walking Dead, não são só os monstros que assustam: o homem é o lobo do próprio homem. Ainda na seara dos mortos-vivos, All of Us Are Dead, hit coreano da Netflix, aprofunda a premissa sombria: a civilização desaba quando os instintos humanos são liberados em forma bruta.
Adaptação do livro homônimo da canadense Emily St. John Mandel, de 2014 — logo, a pandemia da obra em nada se relaciona com a atual —, Estação Onze oferece um vislumbre do Apocalipse não menos devastador, mas com uma distinção fundamental: aqui, persiste um fio de esperança na humanidade. É como se seus criadores dessem um voto de confiança ao tão vilanizado ser humano, que ainda seria capaz de resgatar a pureza e o altruísmo lá no fundo da alma quando tudo desmorona à sua volta.
The Walking Dead – 1ª Temporada Completa
Ao exaltar a empatia em meio ao caos, Estação Onze se tornou um dos expoentes do subgênero batizado na língua inglesa de cosy catastrophe (catástrofe aconchegante, em português). A série não está sozinha em uma seara na qual o fim do mundo é pretexto para filosofar sobre as razões que fazem a civilização ainda valer a pena. É o caso da adorável Sweet Tooth, da Netflix, na qual crianças meio humanas, meio bichos são protegidas por adultos íntegros, enquanto os maus as caçam, julgando que são elas as culpadas pelo vírus que matou bilhões. Já na comédia Good Omens, do Prime Video, da Amazon, um anjo e um demônio, divertidíssimos, boicotam o Apocalipse — pois estão demasiadamente inebriados com os pequenos prazeres criados pelos homens, como o rock’n’ roll, os carrões, os livros e até os sushis. Excelentes, ambas as séries vão ganhar continuações neste ano. A elas se soma O Último Homem da Terra, da Star+. Em quatro temporadas, a comédia segue a surreal peregrinação de um homem solitário em busca de companhia. Atualmente em produção, uma adaptação da trilogia MaddAddão, de Margaret Atwood (de O Conto da Aia), vai reforçar a leva: ao narrar a história de sobreviventes de uma tragédia química, a afiada Atwood fala de personagens que encontram, quem diria, uma vida melhor após o cataclismo.
O termo cosy catastrophe foi cunhado por Brian Aldiss (1925-2017), autor inglês que criou o conto Superbrinquedos Duram o Verão Todo, inspiração para o filme AI: Inteligência Artificial (2001), de Steven Spielberg. Interessado mais nas angústias existenciais que na desordem social, Aldiss dotou a ficção científica de tramas nas quais os protagonistas descobrem insuspeitas vantagens ou acham refúgio em meio a desastres que vão de ataques alienígenas a mudanças climáticas. A definição vem sendo ampliada, abraçando livros, filmes e séries em que as qualidades das pessoas sobressaem a seus defeitos na hora do caos.
Em Estação Onze, é a relação dos personagens com a arte que produz efeito reconfortante. Recebidos como celebridades nos vilarejos por onde passam, os integrantes da Sinfonia Itinerante pós-apocalíptica nasceram de uma inquietação da autora do livro que deu origem à minissérie: ao perguntar a seus amigos do que mais sentiriam falta caso o mundo acabasse, a canadense Mandel percebeu que ela mesma teria saudades de Shakespeare. A estrela da trupe é Kirsten, vivida com igual brilho por Matilda Lawler na infância e Mackenzie Davis na vida adulta. Apresentada no primeiro episódio como atriz infantil em uma montagem do Rei Lear, Kirsten perde rapidamente tudo o que lhe é familiar: o teatro, os pais e seu mentor, Arthur (Gael Garcia Bernal), um astro do cinema que se arrisca nos palcos em busca de credibilidade — mas cuja estreia teatral ocorre justamente no dia em que o vírus se espalha.
Sozinha quando a turbulência se instala, Kirsten é salva por um espectador do espetáculo, Jeevan (Himesh Patel). Abrigada no apartamento do irmão dele, o escritor Frank (Nabhaan Rizwan), a menina aplaca as dores escrevendo uma peça baseada na história em quadrinhos Estação Onze, sobre um misterioso astronauta solitário — obra que ganhou de Arthur dias antes da tragédia. Como essa experiência se conectará com as referências shakespearianas no futuro de Kirsten, é um novelo que vai se desenrolando em lances poéticos no decorrer da história. Se o mundo tem de acabar, que seja um final feliz.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777
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