Após discorrer sobre a relação conturbada com o empresário Marcos Matsunaga, herdeiro da Yoki, e contar como perpetrou o tiro que o mataria, Elize Matsunaga faz uma longa pausa diante da câmera e diz: “Então, eu tive a infeliz ideia de cortá-lo”. A fala é parte de um depoimento, o primeiro dado por ela desde o assassinato em 2012 e concedido ao documentário Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime, que chega à Netflix na quinta-feira, 8.
Dirigida por Eliza Capai, a minissérie documental em quatro episódios reconta detalhadamente o histórico do casal e recria o ambiente de combustão que culminaria no assassinato. Também examina os elementos que influenciaram no julgamento, como a questionável exploração da vida pessoal de ambos: ela, uma ex-prostituta, e ele, um viciado em garotas de programa. Mais um expoente da atual (e popular) onda de documentários criminais, Era Uma Vez Um Crime não re-investiga o caso com o intuito de encontrar novidades, como fez recentemente O Caso Evandro, nem tenta absolver sua protagonista, caso de Making a Murderer. Seu apelo está principalmente na curiosidade gerada pelo depoimento inédito de Elize. No âmbito legal, a série não crava, mas sugere que o caso foi um crime passional, o que poderia ter afetado sua sentença. Elize foi condenada a quase 20 anos de prisão por homicídio qualificado.
Detida na penitenciária de Tremembé, Elize concedeu as entrevistas em 2019, durante duas saídas temporárias – direito garantido por lei a presos com bom comportamento em regime semiaberto. No depoimento, ela garante: só aceitou falar pela chance de contar seu lado da história à filha, que não vê há oito anos. Para equilibrar, advogados de acusação, assim como amigos de Marcos e gravações dos depoimentos de familiares da vítima no tribunal são apresentados para mostrar o outro lado.
Eloquente e com momentos de emoção ao longo da entrevista, Elize relembra a felicidade matrimonial no início da relação, até ser traída pela primeira vez. A ideia de um divórcio se esvai quando ela descobre que está grávida. A relação entra em uma espiral de ciúme mútuo, com mais traições e, segundo ela, ameaças e uma agressão física – evento que teria desencadeado o assassinato. Para se livrar do corpo, como o Brasil todo bem sabe, ela esquartejou o marido e o tirou de casa dentro de três malas. A atenção gerada pelo caso – especialmente pelo fato de ser uma família muito rica e que estava no meio de uma negociação bilionária – transformou o assassinato em um circo sensacionalista. A vida de Elize e Marcos foi destrinchada e ambos foram desmoralizados pelo passado envolvendo prostituição. O gosto por caçar, e até a cobra que tinham de estimação ajudaram a transformá-los em personagens folclóricos. “Eles não eram só ricos, eram ricos excêntricos”, afirma uma das entrevistadas sobre o casal.
Ao longo da narrativa, peças vão se encaixando, e revelam que a vida do casal era a crônica de uma morte anunciada. Devido à paixão pela caça, havia mais de trinta armas de fogo no apartamento do casal. Foi Marcos quem ensinou Elize a atirar – hobby para o qual ela demonstrou ter talento. Após abater animais na mata, ambos os escalpelavam e desmembravam, para depois consumi-los – habilidade que teria facilitado a decisão dela de esquartejar o marido.
Do passado, Elize carregava o trauma de ter sido abusada sexualmente por um familiar, o que a levou a fugir de casa aos 15 anos. Descompensada por descobrir mais uma traição do marido, ela o ameaçou, recebendo de volta outras ameaças, como a de que ele a mataria ou a internaria numa clínica e a impediria de ver a filha. “Você acha que algum juiz vai dar uma guarda pra uma p***?”, teria dito Marcos antes de levar o tiro fatal na cabeça. Nada absolve Elize de seu crime — do qual ela diz se arrepender. O documentário, porém, abre frestas que elucidam o gosto popular por atrocidades, além da cultura que, em casos inversos, faz do Brasil um dos maiores palcos de feminicídios do mundo. Vale a reflexão sobre as questões que cercam esse crime tão hediondo.