‘Atlanta’, de Donald Glover, é ótima série para entender o racismo nos EUA
Produção disponível na Fox e Netflix acompanha as intempéries cotidianas de um grupo de amigos negros
Antissocial e dono de uma afiada ironia, Earn (Donald Glover), protagonista da série Atlanta, se vê obrigado a acompanhar a namorada à festa de um ricaço. A celebração comemora o mês de junho, quando a escravidão foi abolida nos Estados Unidos. O anfitrião é branco, casado com uma negra, fã de rap e exibe pela mansão fotos de viagens à África. O breve episódio de 20 minutos, o nono da primeira temporada, é repleto de referências aos muitos dilemas vividos pela população negra americana em um mundo que finge ser livre de racismos. Quando descobre que Earn nunca foi à Africa, por exemplo, o dono da mansão fica indignado: você precisa conhecer suas raízes. Aos que acompanham a trajetória de Earn sabem que ele mal tem dinheiro para pagar o aluguel, como iria fazer turismo na África? Ele, porém, não precisa dizer nada: suas feições dizem muito. As perguntas continuam: “Quem são seus ancestrais? Congo? Costa do Marfim?”. Earn responde: “Eu não sei. Aconteceu uma coisa muito ruim chamada escravidão que apagou toda a minha identidade étnica”, alfinetada que seu interlocutor não entende.
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Clique e AssineCom duas curtas temporadas, a série Atlanta é um primor da TV americana. Exibida no Brasil pelo canal Fox e disponível na Netflix, o programa criado pelo protagonista Donald Glover – também conhecido na música como Childish Gambino – acompanha um grupo de jovens negros que vivem na cidade do título. Muitos dos dramas cotidianos são comparáveis a qualquer outra série de pessoas em busca de sonhos e amor. Porém, o racismo estrutural é um personagem paralelo da história, como um fantasma que insiste em aparecer quando é menos conveniente.
Glover investe no humor ácido para criticar a sociedade na qual cresceu. Apesar de se tratar de uma ficção, não há margens para situações inimagináveis no roteiro que gira em torno especialmente de dois primos, Earn e o rapper Paper Boi (interpretado pelo brilhante Brian Tyree Henry). O primeiro, cansado de subempregos, tenta alavancar a carreira do primo: que por causa da aparência e do temperamento forte só vê dois caminhos na vida, ser rapper ou traficante. Os diálogos são didáticos e verdadeiros, envoltos em uma comicidade que causa riso, mas não ousa aliviar seu teor crítico.
Nem mesmo o espectador escapa às alfinetadas do roteiro, na maioria das vezes, nada sutis. Glover conseguiu ali o inimaginável: colocar o dedo em antigas feridas, sem sangrar demais, para não perder o espectador, mas o suficiente para mostrar a relevância da história que está sendo contada. Uma aula e tanto para os tempos em que vivemos.