‘Dahmer’: hit da Netflix expõe dilema perigoso de retratar assassinos
O sucesso da série levanta a questão: até que ponto se deve ou não dar visibilidade a criminosos reais na tela?
Um rapaz branco, alto e loiro recebe a visita do pai na prisão. Acompanhado de um advogado, o idoso entrega ao filho duas revistas com o rosto do homem que ajudou a criar estampado nas capas. “Posso levar comigo para ler?”, pede o prisioneiro, recebendo um não como resposta. “O que estão falando?”, indaga, com uma ponta de prazer. “Que você é o canibal de Milwaukee. E que o querem morto”, exalta-se o pai. Parte da minissérie Dahmer: um Canibal Americano, a cena resume a fascinação do serial killer real com o status de celebridade macabra que ganhou ao assassinar dezessete jovens, entre 1978 e 1991. Produzida pelo corrosivo Ryan Murphy e protagonizada por Evan Peters, famoso por viver psicopatas nas telas, a série reproduz em minúcias na ficção as táticas repulsivas do assassino — incluindo necrofilia, desmembramento das vítimas e até canibalismo.
O sucesso expõe um dilema ético: do topo dos mais assistidos da Netflix, com 196 milhões de horas vistas mundialmente, a produção dá ao serial killer — com ou sem intenção — uma visibilidade perseguida por criminosos como ele, que empilhou crimes como troféus e que se deleitaria com o “reconhecimento” se estivesse vivo (Dahmer morreu na cadeia em 1994). Com o gênero true crime em alta, assassinos famosos invadiram os cinemas e o streaming, atraindo o público com um misto perigoso de deslumbre e repugnância. A tendência ganhará reforço em 26 de outubro, com o lançamento na Netflix de O Enfermeiro da Noite, em que Eddie Redmayne vive Charles Cullen (esse, ainda vivo), o assassino mais letal dos Estados Unidos, que confessou quarenta assassinatos, mas pode ter cometido 400.
Não se trata, claro, de condenar toda produção sobre psicopatas reais. Quando feito de modo responsável, o true crime ilumina temas importantes, como o racismo que levou a polícia a ignorar os alertas dos vizinhos e sobreviventes antes de pegar Dahmer. Mas é fato que a exploração excessiva transforma criminosos em estrelas. Dahmer é tema de filmes e documentários que esmiúçam seus rituais sangrentos desde os anos 1990, entre eles o recente Meu Amigo Dahmer (2017), em que é vivido por Ross Lynch. A Netflix ainda lança, em 7 de outubro, a série documental Conversando com um Serial Killer: o Canibal de Milwaukee. “Minha família está revoltada. Está nos traumatizando mais uma vez. De quantos filmes, séries e documentários precisamos?”, questionou no Twitter Eric Perry, primo de Errol Lindsey, a 11ª vítima de Dahmer. Embora qualquer pessoa sã sinta repulsa com as cenas, a escalação do bonitão Peters confere inevitável aura pop ao personagem.
Ted Bundy: Um Estranho ao Meu Lado
Lançado em 2019, Ted Bundy: a Irresistível Face do Mal teve a mesma sina. Protagonizado por Zac Efron, o filme conta a história do americano que matou mais de trinta mulheres nos anos 1970. Pouco após a estreia, o TikTok foi inundado com vídeos de adolescentes fingindo ser Bundy. A propósito: o diretor Quentin Tarantino ensinou como driblar o risco de glamorizar um assassino famoso no filme Era Uma Vez… Em Hollywood (2019): ainda que a seita do notório Charles Manson esteja no centro da trama, ele aparece só de relance, para não ganhar (tanto) cartaz.
Anos antes, porém, o thriller Natural Born Killers, com roteiro do próprio Tarantino e direção de Oliver Stone, foi ligado a uma série de “assassinos copiadores”, que se inspiraram no filme — incluindo os atiradores de Columbine. Chamado de “efeito copycat”, o fenômeno descreve a influência da exibição massiva de crimes sobre outros matadores em potencial. A anatomia de um monstro como Jeffrey Dahmer rende audiência — mas deve, antes de tudo, ser vista como um alerta.
Publicado em VEJA de 5 de outubro de 2022, edição nº 2809
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