De ‘Dona Beja’ a ‘Renascer’, remakes se moldam aos costumes atuais
Nova versão do velho hit da TV Manchete se junta a outros remakes recentes que buscam ajustar as novelas a pautas afirmativas
Em meados de 2021, a executiva Monica Albuquerque estudava com sua equipe de planejamento de conteúdo os projetos que poderiam se tornar a grande aposta da HBO em novelas para o streaming. Além de um roteiro inédito de Raphael Montes, Beleza Fatal, a empresa decidiu fazer um remake de Dona Beija (1986), sucesso estrelado por Maitê Proença na extinta Manchete. Baseada na história real de Ana Jacinta de São José, cortesã que escandalizou a sociedade no século XIX ao abrir um bordel em Araxá (MG), a história tinha forte apelo sensual: os banhos de cachoeira da protagonista nua marcam até hoje a memória dos brasileiros que acompanharam o folhetim. “Vimos que a história tinha potencial contemporâneo e vários elementos atuais para se abordar, como a liberdade sexual e a luta racial”, contou Monica a VEJA.
A nova versão — prevista para estrear na Max (antiga HBO Max) até o primeiro trimestre de 2025 — agora tem Grazi Massafera na pele da heroína e pretende se apoiar na nostalgia para bombar a novela e alavancar o serviço de streaming — mas com os ajustes de costumes que a atualidade exige. Nos bastidores, agora uma coordenadora de intimidade acompanha as cenas de sexo para evitar problemas que assombram Hollywood, como assédio, abuso e constrangimentos. “Tem muitas cenas de sexo, mas não são gratuitas, estamos contando uma grande história aqui”, defende Grazi (leia na entrevista). “Essa função nada mais é que dialogar com os atores, entender os limites de cada um, para que eles se sintam confortáveis”, explica a coordenadora Roberta Serrado. O elenco principal conta com negros em posições de poder, fugindo dos estereótipos óbvios e negativos de subalternos. É o caso dos dois galãs que disputam o amor de Beja: Antônio (David Junior) e João (André Luiz Miranda). A protagonista ainda terá uma mulher trans, Severina (Pedro Fasanaro), como sua fiel escudeira.
Dona Beja não está sozinha nesse sopro de renovação comportamental e na correção política. Desde sua consagração como forma de entretenimento preferida dos brasileiros, nos anos 1960, as novelas primam pela busca da sintonia com as tendências sociais de seu tempo. Isso ainda vale hoje — e uma nova leva de remakes ajuda a esclarecer as diferenças na visão do Brasil de ontem e de agora, ao permitir a comparação entre velhos sucessos e suas versões recentes. Na releitura de Pantanal (2022), da Globo, o fazendeiro José Leôncio (Marcos Palmeira) ganhou discurso crítico ao agronegócio que causa desmatamento. Antes uma mulher apenas omissa, louca e lasciva, Maria Bruaca (Isabel Teixeira) adquiriu brilho empoderado na busca por sua libertação de um casamento tóxico e na autodescoberta sexual. Atual novela das 9 da emissora, Renascer também tem cativado espectadores com a modernização de Buba, personagem hermafrodita na versão original, mas que agora é uma mulher transexual segura de si — assim como sua intérprete, Gabriela Medeiros —, abrindo debates sobre preconceito. Diferentemente da Elas por Elas de 1982, a adaptação da faixa das 18h atual tem duas mulheres negras (Thalita Carauta e Késia Estácio) e uma trans (Maria Clara Spinelli) entre as sete protagonistas.
O fato de Pantanal e Renascer conseguirem levantar o ibope baixo herdado de suas antecessoras mostra que o povo vê as mudanças com olhar interessado. No caso de Dona Beja, a expectativa é atrair espectadores nostálgicos, mas também acenar aos mais jovens com a reinvenção do passado. A aposta da Max é alta. Com locações no Rio, a produtora Floresta, detentora dos direitos da obra, construiu uma cidade cenográfica de 1 000 metros quadrados na Ilha de Guaratiba para simular a cidade mineira de Araxá, além de montar estúdios na Barra da Tijuca – aos quais VEJA teve acesso — e gravar as aguardadas cenas de cachoeira em Paraty. Vistos de perto, os detalhes ilustram a determinação da empresa em brigar por um naco do público das novelas da TV aberta.
A inovação mais chamativa no roteiro de Daniel Berlinsky e do português António Barreira em relação ao original de Wilson Aguiar Filho (1951-1991) não está exatamente nas dosagens de sexo, mas na inclusão de um núcleo negro poderoso liderado por Antônio, que lutará por uma sociedade mais justa e viverá momentos de afeto com sua família. “Só de poder ressignificar o olhar sobre os negros já é muito relevante”, diz o galã David Junior. “Pessoas como eu querem se ver na tela”, completa o colega Miranda. Ainda é cedo para saber se a nova Dona Beja chegará lá em matéria de qualidade e audiência. Mas que os tempos mudaram, disso ninguém duvida.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882