Distopia? Ataque ao Capitólio é estopim de ‘The Handmaid’s Tale’
Invasão do Congresso americano por arruaceiros pró-Trump lembra série sobre governo totalitário que toma os Estados Unidos em golpe violento
A cena é simples, mas assustadora. Na série The Handmaid’s Tale, a protagonista June (Elisabeth Moss) busca a filha que está com febre na escola e a leva para casa. A agitação de transeuntes ao redor é patente. Em casa, ela e o marido precisam dividir a atenção com o noticiário e o cuidado com a filha. June caminha pela casa, entre o quarto da criança e a sala – onde o marido, chocado, observa na TV o ataque coordenado de homens armados ao Pentágono, à Suprema Corte e ao Capitólio. O grupo é formado por americanos fundamentalistas cristãos que se autodenominam “Filhos de Jacó”. Em seguida, a Constituição americana é suspensa e o país se transforma em uma sangrenta e repressora ditadura.
Apesar de não ser um ataque tão bem coordenado, a invasão dos apoiadores de Donald Trump ao Capitólio nesta quarta-feira, 6, evoca, e muito, a tensão vista na série de TV inspirada no livro O Conto da Aia, de Margaret Atwood. A casa legislativa, em Washington, é símbolo da longa tradição democrática e liberal do país. Invadir tal espaço para interromper a sessão que certificaria a eleição do novo presidente, Joe Biden, mostra que a ficção, infelizmente, não está tão longe da realidade.
O fatídico golpe que pauta toda a série é destrinchado em um flashback no primeiro episódio da segunda temporada. Antes, na primeira temporada, seus personagens já viviam as consequências daquele dia fatídico: repressão das liberdades individuais, assassinatos organizados pelo Estado e total privação dos direitos das mulheres são alguns desses resultados.
Desde que chegou ao poder, aliás, Donald Trump deu um empurrãozinho no sucesso da série e do livro da autora canadense. Seu trato indecente com as mulheres e a repressão a políticas como a liberação do aborto fizeram com que feministas ao redor do mundo protestassem nas ruas vestidas de aias – protagonistas escravizadas pelos homens da elite na trama.
Lançado em 1985, O Conto da Aia foi inspirado na realidade de mulheres e de governos totalitários pelo mundo. Margaret Atwood sempre fez questão de dizer que Gilead – nome dado aos Estados Unidos após o golpe – não era só fruto da sua cabeça, mas sim um apanhado de fatos. “O tempo passou, e não nos afastamos de Gilead. Caminhamos em direção àquilo, especialmente nos Estados Unidos”, disse a autora em 2019, quando lançou a continuação Os Testamentos. Na trama mais recente, o governo fundamentalista ainda existe, quinze anos depois do fim de O Conto da Aia. Porém, já demonstra desgastes. Por trás da fachada religiosa, esconde-se a hipocrisia. Pedofilia, corrupção, entre tantos outros pecados contestados pelos próprios golpistas se mostram o motor de suas ações. Seria distopia ou realidade?