‘É um filme sobre a liberdade’, diz Will Smith sobre ‘Emancipation’
O ator dá vida ao homem que escancarou o horror da escravidão no século XIX — um papel notável que marca a volta do astro após o tapa no Oscar
No ápice da guerra civil americana (1861-1865), um escravo identificado apenas como Peter escapou de sua senzala numa plantação na Louisiana — um dos treze estados confederados do Sul que lutavam contra a abolição recém-promovida por Abraham Lincoln. Após ser chicoteado brutalmente, ele enfrentou dez dias de fuga até chegar a um acampamento da União — a liga de 23 estados legalistas do Norte que acabariam vencedores do conflito. O fugitivo foi então eternizado em uma foto que chocaria o mundo ao expor suas costas cobertas de cicatrizes profundas. Para além da imagem capaz de resumir os horrores da escravidão, porém, pouco se sabe sobre o homem que passaria à história como “Whipped” Peter (Peter Chicoteado, em tradução livre). Agora, ele tem sua trajetória imaginada de forma heroica e comovente em Emancipation, filme protagonizado por Will Smith que chega à plataforma Apple TV+ na sexta-feira 9.
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Com orçamento na casa dos 120 milhões de dólares (ou a bagatela de 630 milhões de reais), o longa-metragem com direção de Antoine Fuqua e produção do próprio Smith é talvez o mais caro mergulho já feito por Hollywood na temática da escravidão. Mas o filme foi atingido no meio do caminho por um fator externo imprevisto: a repercussão devastadora do tapa desferido por sua estrela no humorista Chris Rock na festa do Oscar 2022. Apesar dos pesares, e após meses de mea-culpa sem fim, Smith empreende um vigoroso retorno à cena com Emancipation.
O filme carrega na violência gráfica ao resgatar o drama de Peter. O prisioneiro se escondeu em pântanos, lutou com animais selvagens e chegou a passar cebola no próprio corpo para despistar os cães de caça dos algozes — notadamente, o escravagista Fassel (Ben Foster), que não se cansa de alardear como aprendeu a odiar os negros. Entre as cenas de abusos da escravidão, a trama exibe torturas como fugitivos amarrados pelos pés em cavalos e arrastados de volta às senzalas — ou que têm a cabeça decapitada e pendurada para inibir novas fugas. Além disso, há execuções arbitrárias de cativos com tiros na cabeça, longos açoitamentos e mortes por exaustão em decorrência do trabalho forçado na construção de uma ferrovia para os confederados.
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Emancipation oferece bem mais, felizmente, que um mero compêndio de imagens impactantes: ao resgatar a enigmática figura de Peter, dando-lhe um amor, uma família e uma trajetória destemida na guerra, o longa funciona como um esperançoso libelo de reparação histórica. “É um filme sobre a liberdade”, ponderou Will Smith a VEJA (leia a entrevista abaixo). “Enxergo Peter como um ser humano diferente, um guerreiro espiritual. Seu corpo estava escravizado, mas o espírito era completamente livre”, completou o astro.
Embora sua biografia seja um mistério, a fotografia que exibe as costas dilaceradas de Peter converteu-se numa imagem de imenso simbolismo libertário. Àquela altura do século XIX, sua circulação não só foi importante para a causa abolicionista como ajudou a definir os rumos da secessão — pois ela demonstrou, sem margem para dúvidas, que os confederados defendiam uma aberração moral. É um personagem e tanto, enfim — e Smith, aos 54 anos, não perde a chance de extrair o máximo dele. Ao dar vida a um homem capaz de manter a perseverança e a fé em meio à injustiça, o astro alcança seu melhor em matéria de atuação dramática — muito superior, aliás, ao papel do pai das tenistas Venus e Serena Williams em King Richard: Criando Campeãs (2021), que lhe rendeu o Oscar de ator na noite anticlímax do tapa. Uma nova indicação seria merecida — pena que, ironicamente, ele agora até possa concorrer, mas esteja proibido de ir à festa mesmo se ganhar a estatueta.
“É um filme sobre a liberdade”
Will Smith falou a VEJA sobre sua atuação no filme Emancipation.
O que atraiu o senhor no papel do escravo Peter? Sempre evitei filmes ambientados durante esse período da história, porque nunca quis retratar os negros dessa maneira. Mas, após ler o roteiro, entendi que Emancipation não é um filme sobre a escravidão, é sobre a liberdade. Peter se apegou a algo tão potente em seu coração e mente que eu senti que era algo que todos no planeta precisavam ver.
Qual foi a parte mais desafiadora de interpretá-lo? Foi muito difícil filmar em um pântano e ouvir a produção gritar: “Corta! Tirem ele daqui, temos um crocodilo na água!”.
O que leva dessa experiência? O poder que uma imagem pode ter. De uma foto de 1863 em que ninguém sabia de verdade o nome do homem retratado surge, centenas de anos depois, um filme sobre a vida dele. Para mim, isso representa de forma eloquente o poder da arte de transformar os corações e as mentes.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819
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