Em conversa com uma reverenda e celebrante de casamentos, Hillary Clinton explica seus motivos para ter permanecido casada com Bill Clinton mesmo após o então presidente dos Estados Unidos protagonizar um escândalo sexual envolvendo charutos e a estagiária da Casa Branca Monica Lewinsky, na década de 90. “Você disse que a coisa mais corajosa que já fez foi ficar nesse relacionamento. Como isso funcionou?”, pergunta a interlocutora à poderosa ex-primeira-dama, secretária de Estado e candidata à Presidência americana no quarto episódio de Gente de Coragem, nova série documental da Apple TV+, já disponível no streaming. Ao lado da filha, Chelsea, que viveu no olho do furacão conjugal quando criança e agora divide a apresentação da série com a mãe, Hillary explica que fez o que julgou certo para si após se aconselhar com amigos. “A decisão da vida privada mais difícil que já tive de fazer foi a de ficar no meu casamento. Levou tempo, mas hoje estou confortável com isso”, disse ela em entrevista a VEJA pelo Zoom, junto de Chelsea. “Não tenho arrependimentos.”
Na época, lá se vão 24 anos, a escolha de Hillary suscitou ironias implacáveis em todo o mundo — algo inevitável quando se é a esposa traída do chefe de Estado da maior potência mundial. A mágica de Gente de Coragem é ver ela e a filha se abrindo com franqueza sobre suas experiências nos bastidores do poder, enquanto discutem a condição feminina com mulheres de diferentes perfis. Nos oito episódios, as duas revisitam dramas antigos, as raízes dos Clinton no Arkansas, além de contar histórias inspiradoras de mulheres resilientes, empoderadas, destemidas e até desacreditadas — como as bombeiras que lutam por espaço nos quartéis, ativistas do clima, cientistas, viúvas, comediantes, militantes da comunidade LGBTQIA+ e negra. O programa também entrevista celebridades dispostas a usar sua voz para mudar o mundo, como a influenciadora digital e bilionária Kim Kardashian, que estudou direito para ajudar pessoas negras presas e condenadas a penas desproporcionais aos crimes cometidos.
Produzida pelas próprias mulheres do clã Clinton, a série se baseia na obra The Book of Gutsy Women (O livro das mulheres corajosas, em tradução livre), que as duas lançaram em 2019. Ágil e comovente, o programa mostra que elas estão dispostas a seguir os passos da família de outro presidente americano democrata e pop, Barack Obama, na busca pelo sucesso no streaming. No caso de Hillary, que em 2020 já havia estrelado sozinha uma série da plataforma Hulu, é um pouco mais que isso: aos 74, ela tem a chance de quebrar de vez a pecha de antipática e fria que os detratores — com um tanto de machismo, claro — colaram à sua imagem.
Na entrevista a VEJA, Hillary e Chelsea contam por que decidiram cutucar feridas antigas de suas vidas já amplamente expostas. “Não bolamos um roteiro para o programa, especialmente sobre o que os outros perguntariam para nós. Mas nossas histórias se encaixaram no esforço de ressaltar como mulheres tomam decisões corajosas em suas vidas”, disse a ex-secretária de Estado. Nas suas impressões sobre os desafios do poder, Hillary também não titubeia ao reconhecer qual a decisão mais difícil de sua vida pública: concorrer à Presidência na eleição que acabou perdendo para Donald Trump, em 2016. “Foi um momento duro e difícil. Mas eu igualmente não tenho arrependimentos sobre o que fiz”, declarou.
No caso de Chelsea, as experiências não são menos dramáticas. A filha única dos Clinton cresceu sob escrutínio devastador da mídia. Aos 42 anos, guarda traumas — no primeiro episódio, ela expõe como foi terrível ser alvo de piadas de humorísticos e comentaristas conservadores. “Não fiz terapia ou aconselhamento, mas sou grata a minha mãe e meu pai, que sempre deixaram claro não ser aceitável adultos fazerem piadas com uma criança”, disse a VEJA. “Doeu, mas eu sabia que não era sobre mim.”
Entre bate-papos profundos e gargalhadas, Hillary até relembra no documentário um episódio inusitado sobre o Brasil. Ela conta que parou de usar saias após ter tido sua calcinha fotografada durante um encontro com a então primeira-dama Ruth Cardoso, em visita ao país nos anos 1990. A polêmica foto foi usada como propaganda de uma marca de lingerie, causando saia justa internacional à época. Apesar disso, a política garante não guardar mágoas: “Aprendi ali uma importante lição”. As confissões das poderosas sem filtro são reveladoras.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806
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