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Críticas e análises sobre o universo da televisão e das plataformas de streaming
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Hora do nonsense: séries que você assiste sem entender nada – mas viciam

A vertente peculiar do humor se renova na tela, e usa a falta de sentido para falar de angústias reais

Por Thiago Gelli 7 jul 2024, 08h00
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  • Um alienígena tão adorável quanto Alf, o ETeimoso pousa no subúrbio americano, seduz um pai certinho e destrói uma família nuclear estável. Momentos depois, Steve Buscemi dá vida a uma versão antropomorfizada da letra Q, oprimida por suas colegas por aparecer cercada das integrantes mais convencionais do alfabeto, em vez de estar próxima das peculiares W, X, Y e Z. Antes do final do episódio, uma professora de ensino fundamental investiga o significado de um desenho impróprio no banheiro da escola — e faz uma descoberta cabeludíssima. As situações delirantes do primeiro episódio de Fantasmas são um desafio para qualquer mortal captar do que trata a série, que ganha novos capítulos às sextas-feiras na plataforma Max. Mas entender, aqui, é o de menos: a trama criada pelo jovem ator e roteirista Julio Torres é vibrante e já se tornou um item cultuado, especialmente pela geração Z. Com isso, veio reforçar uma tendência em alta nas telas: o nonsense, aquele tipo de humor que explora o absurdo e a falta de sentido, vive um momento de retomada criativa.

    A origem do cinema surrealista – Ricardo Zani

    Mais que explorar o bizarro e o insólito, o nonsense reflete — não se engane — as angústias do mundo contemporâneo. Historicamente, essa forma singular de humor já era praticada com brilho pelos Irmãos Marx nos anos 1930, numa transposição do teatro vaudeville às recém-chegadas telas de cinema. Seu maior representante, contudo, é o espanhol Luis Buñuel, cineasta vanguardista que levou os postulados do movimento surrealista para as câmeras e os utilizou para parodiar o status quo e atacar a ditadura franquista em clássicos como O Anjo Exterminador (confira abaixo). Na TV, o recurso é facilmente identificado na misteriosa Twin Peaks (1990), de David Lynch, ou no humor cotidiano de Seinfeld, que satirizava o furor caótico da vida em Nova York.

    Meu Último Suspiro – Luis Buñuel

    Os responsáveis pela volta triunfal do nonsense à ordem do dia têm nome e sobrenome: o cineasta Yorgos Lanthimos e sua musa-mor, a atriz duplamente oscarizada Emma Stone. Com seu modo muito pessoal, o diretor grego provou que é possível extrair poesia visual e mensagens contundentes de tramas cômicas que flertam com o ilógico, como O Lagosta (2015) e o incensado Pobres Criaturas (2023). É justo, portanto, creditá-lo como reinventor moderno da arte do absurdo. O papel de Emma Stone no fenômeno não é menos relevante. A atriz já declarou que só o cinema é capaz de unir abstração e concretude de tal maneira — e tem faro apurado. Ela abraçou o nonsense como protagonista dos longas de Lanthimos, emendando Pobres Criaturas com o ainda mais insano Tipos de Gentileza, que traz três histórias sobre temas como matrimônio e estreará no Brasil em breve. Mas não só: surge em destaque também no elenco de The Curse, série do Paramount+ que lhe rendeu uma indicação ao Globo de Ouro em 2023 — e é, ainda, produtora da recém-lançada Fantasmas.

    BIZARRO - Emma Stone e Nathan Fielder em 'The Curse': entender é o de menos
    BIZARRO - Emma Stone e Nathan Fielder em ‘The Curse’: entender é o de menos (Paramount+/.)

    Twin Peaks: Arquivos e Memórias – Brad Dukes e Carlos Primati

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    The Curse sintetiza um paradoxo característico da nova safra do nonsense: ainda que lá no fundo o espectador tenha vontade de confessar que não entendeu patavinas do que se passa em cena, a série é tão enigmática e bem escrita que se revela viciante. A trama dos cineastas Nathan Fielder e Benny Safdie fala de um casal que entra em crise moral ao longo das filmagens de um reality show sobre reformas ecológicas de imóveis. Como antecipa o título, The Curse (“A Maldição”), o par é alvo de uma mandinga lançada por uma menininha inspirada por um perfil no TikTok — e vai perdendo as noções de realidade, ética e afeto, até chegar a um final avesso às regras da física, num dos episódios de televisão mais curiosos da década.

    Será que isso presta? – Jerry Seinfeld

    Esse mote dá uma pista das razões do apelo renovado do nonsense no entretenimento atual. As novas séries do gênero falam a uma geração que já nasceu imersa na algaravia desconexa (e enganosa) de redes sociais como TikTok ou Instagram. Aos 37 anos, Julio Torres, criador de Fantasmas, explora delírios virtuais em que tudo é exagerado e simultâneo. Ele vive um personagem homônimo que mergulha nessas fantasias para ignorar seus próprios problemas e pesadelos. Diante de um mundo tão enlouquecedor e absurdo, rir ainda é o melhor remédio.

    Loucos sinais dos tempos

    No cinema e na televisão, o nonsense sempre foi um recurso valioso para revelar a incongruência humana — e seus riscos

    'O Anjo Exterminador' (1962)
    ‘O Anjo Exterminador’ (1962) (./Divulgação)

    O Anjo Exterminador (1962)
    Filmada dois anos após o fim do exílio de Luis Buñuel da Espanha, a comédia expõe perversões de pessoas da alta classe do país trancadas numa sala por quatro dias — uma crítica mordaz às elites e uma alegoria dos horrores do franquismo.

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    'Seinfeld' (1989-1998)
    ‘Seinfeld’ (1989-1998) (./Divulgação)

    Seinfeld (1989-1998)
    Do “nazista da sopa” ao episódio em que Jerry e companhia vagam por uma gigantesca garagem em busca de um carro desaparecido, a série exorbitava em bizarrice ao tratar da vida em Nova York e de seus cínicos habitantes.

    'Tipos de Gentileza' (2024)
    ‘Tipos de Gentileza’ (2024) (Disney Pictures/.)

    Tipos de Gentileza (2024)
    Mais insólito que Pobres Criaturas, o novo filme de Yorgos Lanthimos traz três histórias peculiares que vão da busca por uma mulher capaz de reanimar mortos ao estranho retorno de uma esposa desaparecida.

    Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900

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