Eliseo (Guillermo Francella) ama seu trabalho de três décadas como zelador de um prédio de classe média alta em Buenos Aires — onde também mora numa casinha humilde típica no terraço. Sempre solícito aos moradores e cheio de esquemas escusos para conseguir uma graninha extra, o homem vê sua paz em risco quando o presidente da associação de moradores (Gabriel Goity) inventa de construir uma área de lazer com piscina, academia e sauna no terraço — o que provocaria o despejo e a demissão de Eliseo, que agora seria trocado por uma empresa de limpeza profissional. Esperto, o funcionário decide lutar para manter seu emprego e sua casa pondo em prática planos mirabolantes para convencer os residentes de que sua presença é mais valiosa que uma piscina — mesmo que para isso precise mentir, manipular, chantagear e até causar divórcios em Meu Querido Zelador, série argentina que atesta o desejo do país latino em conquistar o filão de séries, após se impor como o melhor cinema autoral do continente. O comportamento peculiar de Eliseo se repete em escalas maiores na segunda e na terceira temporada, recém-chegada ao Disney+, que exibe igual vigor na guerra de ideais (e de classes) que faz a delícia dos espectadores.
Fruto de uma longa tradição de valorização do audiovisual, amparado por políticas públicas — atualmente na mira do presidente ultradireitista Javier Milei —, o cinema argentino se estabeleceu, com razão, como um dos melhores do mundo ao unir requinte visual e roteiros sagazes. A combinação ganha, nas mãos dos hermanos, um brilho que raramente se vê — é forçoso reconhecer — nos filmes brasileiros: autocrítica, irônica e sem cair na tentação de dar palco a egos inflados, a produção local alfineta os excessos e as breguices dos ricos e poderosos, avacalha todos os lados políticos e não se perde em ingenuidades maniqueístas. O mesmo frescor se reflete em séries como Meu Querido Zelador e O Faz Nada, outra pérola da Disney+ (que recentemente absorveu o catálogo do extinto Star+). Ambas as séries são criações da dupla Mariano Cohn e Gastón Duprat, que definiram o tom certeiro da nova safra portenha.
Enquanto Eliseo luta contra pessoas influentes, Manuel (Luis Brandoni) de O Faz Nada é um crítico gastronômico esnobe e dândi que facilmente poderia morar no edifício do zelador. Ao contrário deste, porém, seu objetivo é manter a vida metódica e confortável que ostenta há quarenta anos, com a ajuda da fiel governanta Celsa (María Rosa Fugazot). Quando ela morre inesperadamente, o bon vivant a princípio resiste, mas logo joga a toalha: contrata uma paraguaia desesperada por emprego para aprender a cuidar dele. Os dois criam um laço de cumplicidade por meio da única coisa que têm em comum: a paixão por comida boa. Na minissérie de apenas cinco episódios, a fotografia de pratos refinados dá um toque especial às cenas. A cereja no bolo é a participação de Robert De Niro, astro de Hollywood que não gosta de atuar em séries, mas abriu uma exceção a pedido do veterano Brandoni, seu amigo de longa data. Após conquistar oito indicações ao Oscar — vencendo duas, por A História Oficial (1985) e O Segredo dos Seus Olhos (2009) —, os hermanos agora querem ganhar a maratona do streaming. E olha que eles merecem.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902