Neil Gaiman a VEJA: ‘Todo ser humano é tocado pelos sonhos’
Confira aqui mais trechos da entrevista que o autor britânico concedeu a VEJA sobre a adaptação de 'The Sandman' pela Netflix e diversidade na tela
Trinta e três anos se passaram desde que a primeira edição de Sandman chegou às bancas americanas e brasileiras, apresentando um homem magro, de cabelos espetados e idade indefinida, com uma capa escura cobrindo o corpo inteiro. Convocado num ritual amador de magia negra, ele ficaria preso por mais de 100 anos, período que coincidiria com a ascensão do nazismo e a II Guerra Mundial, entre outros eventos traumáticos da humanidade. Sonho não era apenas o fenômeno que acontece quando adormecemos, mas algo de sentido mais amplo, que incluía noos desejos e aspirações de olhos abertos. Sua história atraiu leitores do mundo todo, ainda fiéis hoje, três décadas depois. Embora as adaptações para o teatro, rádio e as artes de fãs tenham sido numerosas, não havia Sandman na TV ou cinema. Agora essa lacuna enfim é suprida.
Tema de uma reportagem desta edição de VEJA, a série que chega à Netflix nesta sexta, 5, com dez episódios de aproximadamente uma hora, é uma versão que capta com sagacidade e precisão a saga de Sandman. Alguns diálogos – como na famosa história O Som das Asas Dela, em que a Morte, irmã do Sonho, é apresentada aos leitores – são interpretados linha a linha. Neil Gaiman, o prolífico criador da HQ, co-assina o roteiro e a produção-executiva. Como nas adaptadções de seus romances Deuses Americanos (Starz e Amazon Prime Video) e Good Omens (Amazon Prime Video), participou ativa e pessoalmente de cada detalhe. Mas as duas séries foram um aperitivo para o lançamento principal. Do CGI ao elenco – com atores como Charles Dance, Stephen Fry, David Thewlis e John Cameron Mitchell – tudo funciona para recriar o universo de um dos personagens mais famosos dos quadrinhos globais (e é impossível parar de ver no meio).
“Acho que fizemos mágica. A série tem o gosto e o cheiro de Sandman”, disse Gaiman via por Zoom, direto de Londres, onde participou dos eventos de pré-estreia, em entrevista publicada por VEJA na mesma reportagem. Na conversa, ele falou sobre a criação do personagem e a importância dos sonhos, especialmente no mundo em que vivemos hoje. Fez também um apelo: “Queria pedir a todo mundo no Brasil para ver Sandman. Mesmo se tiver de ir à casa de um amigo com Netflix”.
Confira abaixo outros trechos inéditos da conversa:
Como você se sente lançando Sandman agora? Estou muito feliz. Estranhamente, é a única coisa sobre a qual consigo pensar. Isso não diz se a série é boa ou não, mas acho que fizemos mágica. Tem o gosto e o cheiro de Sandman. Levar essa versão da história para o Brasil me deixa especialmente feliz. É como voltar para 1990, ao início das edições internacionais da HQ. O Brasil foi o primeiro país a traduzir Sandman. Algumas edições eram 100% brasileiras, muitas inclusive melhores que as americanas, porque não tinham um anúncio na contracapa. Às vezes era um detalhe da capa de Dave [McKean] ampliado para preencher a página inteira. Noutras, uma resenha ou ensaio de Leandro Luigi del Manto sobre o universo DC. O Brasil foi o primeiro país onde vi Sandman no palco, em São Paulo, em 1996. Foi também o lugar em que, de repente, todo o público avançou em minha direção. Um segurança me levantou, entregou para outro, e então para outro, que me tirou dali. Eu pensei: o que acaba de acontecer? Esse tipo de coisa não acontece no mundo real.
Por que decidiu contar a história do Senhor dos Sonhos? Porque eu era um autor muito jovem, e a ideia de escrever uma HQ mensal me aterrorizava, porque eu precisaria criar uma história todo mês. A ideia de escrever sobre alguém que já estava aqui antes do início dos tempos me oferecia uma tela enorme para contar minha história. Poderia usar fatos históricos, mas também ser esquisito o quanto quisesse. Não existe um ser humano que não seja tocado por sonhos, e isso conferia um lugar, uma máquina com a qual contar histórias.
Do elenco ao roteiro, a série contém inúmeras atualizações em relação ao Sandman original. Como os fãs vêm recebendo essas mudanças? Foi maravilhoso contar a história de novo e atualizá-la onde era necessário, e mesmo não atualizá-la onde nada havia mudado. Achei estranho algumas pessoas virem até mim e dizerem que não estou sendo fiel a Sandman porque temos personagens gays, trans, de outras raças. Eu digo: você sabe que essas reclamações são, na verdade, direcionadas ao universo de Sandman? Essas pessoas que reclamam não conhecem de fato os personagens, porque, ao mesmo tempo, tenho milhares de fãs dizendo que quem pensa assim é um idiota. Ah, mas por que você não fez um Sandman mais parecido com o que ele era na história tal? Mas nós fizemos. Então, do que estão reclamando?
O novo Sandman contém mais diversidade, mas o original já era um precursor notável nesse sentido, não? Muito já foi dito sobre o tema e, particularmente, achei o casting da série incrível. As pessoas vão continuar a reclamar, mas Sandman foi talvez uma das primeiras HQs a retratar a diversidade que existe do mundo. Acho interessante que, há 30 anos, com tudo o que fiz em Sandman, não havia nenhum ruído a esse respeito. Ninguém se importava, ou se aborrecia. Eu podia criar um episódio em que todo mundo era africano, inclusive Morpheus, e contar uma história que se passava 10 000 anos antes. Ninguém reclamava. Ninguém se sentia ameaçado. Agora, as pessoas estão nervosas. Elas ficam realmente aborrecidas e obviamente se sentem ameaçadas. Ok, então isso significa que o que eu queria dizer lá nos anos 1990 é ainda mais importante agora. Ou não haveria essa reação.
Como se deu a escolha do elenco? Nós tínhamos 340 papéis com falas em Sandman, e eu me envolvi em 100% dos testes. Com Morpheus, recebemos um e-mail com quatro candidatos. O vídeo de Tom Sturridge era o terceiro, acho. Tom era a primeira escolha, mas vimos centenas de outros testes. E, quando a Covid começou, a Netflix disse: vamos ver todas as possibilidades. Então, vimos outros milhares. Na verdade, isso serviu para mostrar que tínhamos feito a escolha certa com Tom Sturridge. Muito além de sua aparência física, o que impressionava era o jeito como dizia as falas.
E o que levou a escalar Kirby Howell-Baptite, uma atriz negra, para interpretar a Morte, irmã mais velha do Sonho? Me divirto e me irrito quando atribuem a escalação de Kirby à agenda de diversidade. Tenho vontade de perguntar: tem algo no teste dela de que você não gostou? Vi centenas de pessoas dizerem essas mesmas falas. Mulheres de todas etnias, supermodelos, estrelas de cinema. Acreditei na Morte de Kirby dialogando com o Sonho de Tom [Sturridge]. Foi assim com cada um dos 340 papéis. Às vezes, inclusive, tivemos sorte. Atores como John Cameron Mitchell [o dono de pensão Hal] e Stephen Fry [o sonho Verde do Violino] queriam interpretar os personagens porque adoravam os quadrinhos.