O Urso e mais: as séries que ‘problematizam’ ambientes de trabalho tóxicos
A recente temporada adiciona mais horrores a seu retrato brutal da alta gastronomia
Na manhã seguinte à inauguração caótica do refinado restaurante The Bear, o chef Carmy (Jeremy Allen White) adentra a cozinha sozinho e refaz minuciosamente uma série de receitas que beiram a perfeição — mas à qual, na sua visão exigente, ainda não chegou. Metódico, ele está determinado a conquistar uma estrela Michelin — a maior honraria da gastronomia — e trabalha incessantemente para assegurar o alto padrão do novo estabelecimento. Comidas belas à parte, a terceira temporada de O Urso, que acaba de estrear no Disney+, vê Carmy reviver antigos demônios na ânsia de ser impecável, e há um em especial que o atormenta sempre: o carrasco David Fields (Joel McHale), chef que fez de sua vida na cozinha um inferno enquanto ele trabalhava e estudava em Nova York — que, finalmente, vai ser confrontado sobre os métodos abusivos que fizeram de Carmy o chef que ele é hoje, para o bem e para o mal.
Marcada por seu ritmo ansioso, e pelo tilintar irritante das panelas, O Urso é exemplar inequívoco de um filão que vem ganhando corpo nas telas nos últimos anos: as séries que mergulham em ambientes de trabalho tão ambiciosos quanto caóticos, geralmente comandados pelo punho de ferro de chefes abusivos. A tendência, vale destacar, não distingue profissões e mostra que sobreviver em qualquer uma delas pode ser um desafio. Além da cozinha de Carmy, que funciona como uma panela de pressão prestes a explodir, produções do gênero mergulham em cenários que não se restringem ao tradicional escritório: transitam da competição implacável no mercado financeiro de Industry, drama com Kit Harington (Game of Thrones) que estreia sua terceira temporada em agosto no Max, ao nada glamoroso bastidor do show business em Hacks, também da plataforma — na qual a relação da comediante Deborah Vance (Jean Smart) com a roteirista Ava (Hannah Einbinder) oscila do chamego à humilhação. Há ainda a entediante burocracia do MI5, que escanteia agentes desajustados como o vivido por Gary Oldman na série Slow Horses, cuja quarta temporada chega em setembro à Apple TV+.
Além da falta de um RH decente, a realidade trabalhista nas telas comunga de uma ambiguidade curiosa: ao mesmo tempo que o ambiente esmaga seus funcionários, deixando o psicológico de muitos deles em frangalhos com os abusos de superiores e a competitividade exacerbada, ele também é o objeto de desejo dos protagonistas. Mais que meio de subsistência, eles enxergam o trabalho como prioridade inegociável e almejam chegar ao topo da profissão — mesmo que o preço a pagar seja alto. Carmy tem Fields como um antimentor — alguém que ele vê como exemplo de que tipo de chef não ser. Mesmo assim, explode na cozinha e repete comportamentos de seu carrasco na ânsia de se provar como profissional, levando à loucura também aqueles que o cercam, como a promissora chef Sidney (Ayo Edebiri) — que já chegou a trabalhar sem salário em prol do restaurante e, a despeito de tudo, titubeia diante da chance de se livrar das garras do Urso quando tem a chance.
Mas nem só de protagonistas ambiciosos vive o trabalho nas telas: produções como Succession e The White Lotus expõem um lado mais dramático da situação: os super-ricos que exploram e humilham seus funcionários. Exemplo disso são os faz-tudo da família Roy e os serviçais dos resorts de luxo de White Lotus, que ouvem todo tipo de barbaridade dos clientes de nariz em pé que frequentam as suítes portentosas. Em um extremo distópico, há ainda Ruptura, série da Apple TV+ cuja segunda temporada chega à plataforma em janeiro de 2025. Na trama de ficção científica, a situação é elevada a um absurdo assustador: para sobreviver e se manter produtivos no emprego, funcionários de uma corporação são submetidos a uma intervenção no cérebro que lhes confere duas personalidades distintas — uma existe apenas no expediente e a outra, fora do trabalho. O corpo é o mesmo, mas um “eu” não sabe da existência do outro, e ambos se lembram só da parte da rotina que lhes cabe. A sobrevivência na selva trabalhista é uma receita desafiadora.
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2024, edição nº 2902