J.R.R. Tolkien (1892-1973) tinha 24 anos quando pausou seus estudos na Universidade de Oxford para servir no Exército britânico na I Guerra Mundial. No front, em 1916, o autor testemunhou diversas atrocidades. Sua mente, então, encontrou um refúgio peculiar: à luz de velas, nas trincheiras, Tolkien verteu a experiência tenebrosa no rascunho de um mundo habitado por seres fantásticos. O exercício de fuga foi o embrião do que viria a ser o monumental O Senhor dos Anéis, editado em três volumes entre 1954 e 1955. A história sobre um anel que tem a maldade como matéria-prima — e confere poderes sobrenaturais a seu portador — foi lida, ao fim da II Guerra, como uma metáfora sobre o nazismo e o temor de um conflito nuclear. Tolkien negou a alegoria: segundo ele, O Senhor dos Anéis era um alerta a respeito do amor cego pelo poder.
Quase sete décadas depois, a trilogia — adaptada com louvor por Peter Jackson para o cinema, entre 2001 e 2003 — conserva sua força extraordinária. Uma atemporalidade que será posta à prova na nova e ambiciosa (e bota ambiciosa nisso) aposta do Prime Video, da Amazon: nesta sexta-feira, 2, chegam à plataforma de streaming os dois primeiros episódios de O Senhor dos Anéis: os Anéis de Poder. A superprodução em oito capítulos levou quatro anos para ser filmada e se tornou a série mais cara da história da TV: uma montanha de 1 bilhão de dólares foi investida em duas temporadas. Isso sem contar os 200 milhões de dólares pagos por Jeff Bezos pelos direitos da obra de Tolkien, em 2017.
A dinheirama mostra seu valor na tela. Cenários e figurinos exuberantes fazem das cenas quase quadros de cores impressionistas. O clima idílico e hipnótico destoa da crueza brutal de um Game of Thrones — universo que, com a recente estreia de A Casa do Dragão, da HBO, vai disputar espectadores na propalada “guerra da fantasia” com Os Anéis de Poder. Ambas, porém, são propostas tão distintas que podem ser desfrutadas cada uma a seu modo, e por diferentes públicos.
Gravada na Nova Zelândia, onde Jackson também rodou seus longas de sucesso, a série constitui, em si, um desafio peculiar. Ao contrário da trilogia conhecida e de O Hobbit, livro infantil de 1937 adaptado para o cinema entre 2012 e 2014 também por Jackson, Os Anéis de Poder constrói sua trama não a partir de um livro completo, mas de pistas deixadas por Tolkien no apêndice da trilogia original. Ou seja: há uma boa dose de voo livre dos roteiristas, que se arriscam assim a tocar no intocável: a obra de um autor que concebeu uma mitologia de lógica interna complexa e única. O risco de acusações de heresia por parte dos seguidores mais fanáticos é real e concreto — e a gritaria, claro, começou antes mesmo da estreia.
Para além da trama, que narra acontecimentos anteriores da Terra Média, continente fictício criado por Tolkien, a megaprodução da Amazon chama atenção por uma ousadia em especial: a trama injeta diversidade racial (e de gênero) em um universo inspirado pelas paixões pessoais do autor, de mitos nórdicos à literatura medieval anglo-saxônica — e uma inabalável fé católica. Com a polarização política, movimentos de extrema direita sequestraram a obra de suposta brancura ariana para si, atendo-se ao histórico conservador de Tolkien. Quando atores negros entraram para a série, não deu outra: manifestações racistas eclodiram nas redes sociais. Um alvo foi o porto-riquenho Ismael Cruz Córdova, que dá vida ao elfo Arondir. Segundo os críticos, elfos não podem ser negros — argumento amparado na obsoleta premissa de que Tolkien escreveu sobre heróis europeus. “Estou comprometido em ser autêntico, espero representar pessoas como eu, mesmo que isso incomode”, disse o ator a VEJA (leia sobre os personagens ao longo da reportagem).
A reação reflete o modo como a odisseia de Tolkien transita pelo tempo. Sua mensagem esperançosa caiu bem nos anos pós-guerra, quando os livros saíram. Já os filmes de Jackson viraram um chamado à resistência do bem contra o mal após os atentados de 11 de setembro. A série, agora, depara com a tensão entre discursos autoritários e a luta das minorias por visibilidade. “Tolkien questiona sobre o que você sacrificaria para lutar contra o mal e a intolerância, pergunta que nos diz respeito hoje”, diz o espanhol J.A. Bayona, diretor da série.
Questões políticas à parte, Os Anéis de Poder explora, de forma envolvente, a gênese dos artefatos mágicos que dão nome à saga. A série volta milênios no passado em relação aos eventos tanto da trilogia quanto de O Hobbit, para mostrar como o vilão Sauron, líder dos terríveis Orcs, criou um anel do mal para chamar de seu. O universo de Tolkien é de uma riqueza imensurável — ainda mais com uma injeção extra de 1 bilhão de dólares.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805
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