Em 20 de setembro de 1519, cinco caravelas zarparam da pequena cidade de Sanlúcar de Barrameda, no sul da Espanha, para uma viagem que entraria para os livros de história. Naquela manhã, o navegador português Fernão de Magalhães, a bordo da veloz Trinidad, comandava uma tripulação de 265 desajustados que embarcaram sem garantia de retorno em busca de um estreito não explorado que serviria de atalho para o comércio de especiarias com a Índia. Quase três anos depois, em 6 de setembro de 1522, apenas dezoito tripulantes retornaram com vida, liderados pelo espanhol Juan Sebastián Elcano, que assumiu o comando após a morte de Magalhães. Conhecida hoje como Magalhães-Elcano, a expedição que empreendeu a primeira volta ao mundo é narrada de modo aventuresco na minissérie Sem Limites, já disponível no Amazon Prime Video.
Filmada em diversas localidades da Espanha, Países Baixos e República Dominicana, a produção traz o brasileiro Rodrigo Santoro e o espanhol Álvaro Morte (o Professor de La Casa de Papel) na pele de Magalhães e Elcano numa narrativa que leva a grandiosidade (e qualidade) cinematográfica ao streaming. “Gravamos em vários lugares, mas os navios ficavam no estúdio, então filmamos por lá durante muito tempo, cercados de paredes azuis e apontando para tempestades e ilhas imaginárias. No final do dia, estava exausto”, contou Santoro a VEJA (leia abaixo).
Tamanho esforço expõe uma tendência: desafiadas pela concorrência crescente, as plataformas têm investido para elevar a ambição de seus títulos — e a teledramaturgia espanhola surge como uma força global de respeito nesse novo mapa-múndi das séries. Com um pé na história real e outro em uma atmosfera de ação em alto-mar à la Piratas do Caribe, a superprodução acompanha a aventura a partir da dupla de protagonistas Elcano e Magalhães. Sob a direção de Simon West, conhecido por aventuras como Lara Croft: Tomb Raider, as cenas não economizam nas lutas sangrentas e tempestades marítimas, entregando sequências eletrizantes de ação, como o confronto com nativos na região das atuais Filipinas que levou à morte de Magalhães, em abril de 1521. “A intenção era ser entretenimento puro. Algumas coisas foram adaptadas para que a narrativa funcionasse melhor na ficção. Na vida real, por exemplo, Magalhães e Elcano não viajaram na mesma caravela”, explicou Morte em entrevista a VEJA.
Fernão de Magalhães: A magnífica história da primeira circum-navegação da Terra
A preocupação histórica, porém, não foi deixada de lado. Para retratar a época de maneira fiel, houve um trabalho linguístico minucioso a fim de resgatar o espanhol antigo, além de muita pesquisa envolvida. Santoro consultou uma historiadora para entrar na pele de Magalhães, e teve de ralar com a ajuda de especialistas para abandonar o sotaque atual tanto no espanhol como no português, língua nativa que compartilha com o personagem. “Magalhães aprendeu espanhol na Espanha, que é diferente do que eu falo, o castelhano da América Latina”, afirma ele, que também se iniciou nos desafios do português falado na Europa para as cenas em que o navegador utiliza o idioma materno.
Órfão de pai e mãe, Magalhães foi criado na Corte portuguesa, mas nunca conquistou o apreço do rei. Rejeitado após lutar diversas batalhas pela pátria, recorreu ao monarca da Espanha, então rival de sua terra natal nas grandes navegações, para financiar sua aventura. Acusado de traição pelos portugueses e visto com desconfiança pelos espanhóis, demorou um ano e meio para reunir equipamentos e uma tripulação cheia de tipos erráticos para se lançar ao mar (o próprio Elcano se alistou para fugir de pendências com a Justiça). Para alimentar toda essa gente, carregou os navios com 2,6 toneladas de carne de porco salgada, 200 toneladas de sardinha, sete vacas, cinco porcos e dois carneiros, além de bolachas, água doce e mais de 250 tonéis de xerez, bebida alcoólica típica da Espanha.
A Primeira Viagem em Redor do Mundo
De nada adiantou: nos 120 dias de travessia do Oceano Pacífico, muitos sucumbiram à fome e às doenças. Os que restaram se viraram como piratas para fugir da escassez. Hoje, quase tudo o que se sabe sobre a viagem vem das anotações de Antonio Pigafetta, nobre italiano que pagou para se integrar à tripulação. Mais que ficar marcada como a primeira viagem de circum-navegação, a expedição também provou de uma vez por todas que a Terra não é plana — só por nos livrar dessa sandice hoje ressuscitada nas franjas paranoicas da internet, Magalhães já fez muito pela humanidade.
“Queria torná-lo humano”
O ator Rodrigo Santoro, 46 anos, fala da experiência de viver Fernão de Magalhães na minissérie da Amazon.
Magalhães foi um homem controverso. Como retratou isso na tela? Ele é herói para alguns e vilão para outros. Fez coisas terríveis, então não acho que podemos chamá-lo de herói, na verdade. Minha intenção era torná-lo apenas humano.
Como se preparou? Fiquei confinado com minha esposa, minha filha e Magalhães. Li muito e consultei uma historiadora. Ela me deu informações preciosas de como ele foi criado. Também tive acesso ao seu testamento.
Hoje se fala muito sobre colonialismo. Como a série contribui nesse debate? É o retrato de homens de 1500, que tinham uma relação sem sensibilidade com os nativos. A série não avança, mas pode ser uma semente para a discussão. Uma das heranças do colonialismo é o racismo, e é importante falarmos sobre isso.
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797
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