Quando Morpheus (Tom Sturridge), o Mestre dos Sonhos, anuncia o abandono de seus domínios para capturar o pesadelo perdido que anda deixando um rastro de sangue no Mundo Desperto (ou a realidade como a conhecemos), sua assistente Lucienne (Vivienne Acheampong) questiona, com um ar de quem já sabe bem a resposta: “Milorde, o senhor vai voltar, não vai?”. O carrossel de reviravoltas que se desenrolam a partir daí ilustra os voos de imaginação de que se faz The Sandman, série que chega à Netflix mundialmente nesta sexta, 5. Na adaptação dos quadrinhos publicados pelo inglês Neil Gaiman entre 1989 e 1996, e desde então cultuados como um marco na maioridade literária do gênero, sonhar é muito mais que mero fenômeno biológico, ou do que uma janela que se abre do inconsciente para revelar nossos traumas e desejos, como teorizou Freud. No enredo, os sonhos compõem uma dimensão paralela da existência, tão essencial ao funcionamento do mundo quanto o Céu e o Inferno, moldando a história e a vida das pessoas, trazendo conforto, alegria, desespero, dor ou prazer. O pálido Morpheus — só ele — é a entidade no comando desse mecanismo poderoso.
É, portanto, um baque quando o senhor do Sonhar vem à esfera terrena para sua missão e, no instante em que tenta deter o pesadelo Coríntio (Boyd Holbrook, de Narcos), acaba ele próprio aprisionado pelas mãos de um mago meio picareta da Londres dos anos 1910, Roderick Burgess (Charles Dance). Na verdade, o feitiço desse bruxo de araque havia sido lançado com um outro objetivo, o de aprisionar a Morte, irmã mais velha de Morpheus, a fim de exigir-lhe que traga de volta seu filho, que morreu em batalha na I Guerra. Morpheus caiu na arapuca de Burgess por engano, mas pode ser útil: seu elmo, rubi e saco de areia contêm propriedades que trarão riqueza ao bruxo enquanto confinar o Mestre dos Sonhos dentro de uma esfera de vidro. E assim se passam mais de 100 anos, durante os quais a humanidade se vê privada do velho e bom sono. Pessoas caem em sonambulismo, outras não dormem enquanto o mundo mergulha em pesadelos bem reais: a ascensão do nazismo e a II Guerra. Morpheus, afinal, escapa — mas esse é só o começo da tumultuada jornada para consertar o estrago que seu aprisionamento causou à harmonia da vida.
Absolute Sandman – Volume 1: Edição Definitiva
É possível gastar horas insones rememorando as minúcias preciosas da saga de Sandman. Eis a razão por que as 75 edições do gibi são tão adoradas — o escritor Norman Mailer (1923-2007) as definia como “histórias em quadrinhos para intelectuais”. As aventuras de Morpheus abriram caminho para Gaiman se impor como um dos principais mestres da fantasia contemporânea (leia a entrevista). Depois de Sandman, o britânico de 61 anos escreveu alguns romances extraordinários. Recriou figuras da mitologia clássica nos Estados Unidos de hoje em Deuses Americanos e imaginou as irônicas travessuras de um anjo e de um demônio que tentam salvar a humanidade em Good Omens — ambas vertidas em séries pela Amazon. Em tudo o que cria, vale-se da mesma qualidade inconfundível: a capacidade de conceber tramas que vão da violência gráfica ao humanismo mais elevado, do terror a uma ternura quase infantil. Em Sandman, é de cortar o coração a cena que envolve um Gárgula fofo e seus donos, os irmãos Caim e Abel, condenados a repetir eternamente o destino fratricida da Bíblia num recanto idílico do Sonhar.
Absolute Sandman – Volume 3: Edição Definitiva
Dispondo de 165 milhões de dólares para verter os devaneios de Gaiman em dez episódios, o roteirista e produtor Allan Heinberg não decepciona. Mais que qualquer adaptação de obras do escritor, seu Sandman sabe traduzir o fino equilíbrio entre referências da cultura pop e debates de alto calibre sobre filosofia e moral. Inspirado num personagem do folclore nórdico que soprava areia nos olhos das crianças para fazê-las terem bons sonhos, o Morpheus moderno é quase um super-herói com pele alva e cabelo espetado como os de um roqueiro pós-punk — o impassível Tom Sturridge revela-se uma escolha fiel para o papel. Ao contrário do original, porém, o visual da Morte não mais emula a roqueira dark Siouxsie Sioux: na era da diversidade, ela agora é a atriz negra Kirby Howell-Baptiste. O ator não binário Mason Alexander Park faz as vezes de Desejo, o irmãozinho Perpétuo mais tinhoso (os outros são Delírio, Desespero, Destino e Destruição).
Absolute Sandman – Volume 4: Edição Definitiva
Embora todas essas entidades sejam mais poderosas que os deuses, é o Sonho quem afinal se revela o motor da vida e do progresso. A possibilidade de sonhar, propõe Gaiman, é o que permite à civilização manter-se de pé em meio a tribulações e evita o niilismo e o ódio. Nesse sentido, é primoroso o episódio em que o maluco John Dee (o estupendo ator inglês David Thewlis), de posse do rubi roubado de Morpheus, passa horas testando nas pessoas presentes numa lanchonete o que ocorre quando as ilusões e os ideais são suspensos e os humanos passam a ser regidos só pela verdade nua e crua dos instintos — o resultado é cruel. Num mundo imerso no pesadelo de um retorno do autoritarismo e de ideias obscurantistas, a areia de Morpheus é um sopro de vida.
Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801
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