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‘Underground Railroad’ revê escravidão pelo olhar dos negros americanos

Na série, o diretor Barry Jenkins usa da mesma veia poética de seu aclamado 'Moonlight' para mostrar os horrores do período nos Estados Unidos

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h51 - Publicado em 14 Maio 2021, 06h00

Em uma cidade do estado americano da Carolina do Sul, um homem com pinta de apresentador de circo conduz crianças brancas pelo Museu das Maravilhas Naturais. A atração ali é a “jornada de transformação” dos africanos — de selvagens em pessoas civilizadas. O homem destila absurdos e mentiras, como a de que os negros deixaram a África felizes rumo aos Estados Unidos, onde aprenderam a falar uma língua humana, o inglês, e tomaram pela primeira vez uma boa xícara de chá. “Eles usavam crânio humano como copo”, diz o apresentador, reafirmando a gratidão dos estrangeiros pela nova vida. De dentro da vitrine onde atua como modelo vivo em um campo de algodão cenográfico, Cora (Thuso Mbedu) observa o show de horrores. Ela não conheceu a avó, que foi arrancada de sua tribo na África. Mas, pelo que vivenciou como escrava até ali, Cora sabe que a palavra “gratidão” não se aplica à sua experiência.

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Ambientada no século XIX, quando a escravidão ainda era uma brutal realidade do país, a série The Underground Railroad, que acaba de chegar ao Prime Video, da Amazon, lança um olhar ácido sobre as feridas abertas do racismo e seu reflexo na América dos dias de hoje. Com dez episódios de produção deslumbrante, amparada em um orçamento de 150 milhões de dólares, a série narra a via-crúcis de Cora, uma escrava fugitiva que passa por diferentes locais em busca de algo que se pareça com a liberdade que ela desconhece. Adaptação do livro de mesmo nome do romancista Colson Whitehead, duas vezes vencedor do Pulitzer, The Underground Railroad engrossa o notável movimento de acerto de contas da população negra americana com narrativas deturpadas sobre seu passado — como o clássico …E o Vento Levou (1939), recentemente execrado por mostrar escravos felizes e submissos. “As mentiras ditas no museu representam o que pode acontecer quando os oprimidos não têm a chance de contar sua história”, disse o diretor Barry Jenkins em entrevista exclusiva a VEJA, pelo Zoom (leia mais abaixo).

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Oscarizado pelo exuberante Moonlight, Jenkins ouviu quando criança sobre a Underground Railroad, uma trilha de fuga entre o Sul escravagista e os estados livres do Norte, com paradas pelo caminho comandadas por abolicionistas brancos e negros. A palavra underground, traduzível como subterrâneo ou secreto, despertava nele a fantasia de que teria existido de fato um túnel e um trem — na verdade, era só um codinome: a trilha real se dava na superfície. A mesma fantasia pauta o livro de White­head e também a série: com a liberdade do realismo mágico, a rota transforma-se em uma ferrovia com locomotiva, e as estações são pontos da história humana.

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O museu apresentado no segundo episódio é um dos empregos de Cora após fugir dos maus-tratos recebidos em uma fazenda da Geórgia. Ela vislumbra um possível lar na nova cidade que prega o progresso: lá os negros são assalariados e aprendem a ler. A bonança se revela uma falácia, pois os negros participam de forma limitada da sociedade que os menospreza. Em outra passagem, Cora vê uma estrada ladeada por corpos de negros e brancos abolicionistas enforcados em árvores.

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A trama de tons pesados foi um desafio que Jenkins quase recusou — ele só aceitou o projeto após uma pesquisa do estúdio revelar o desejo dos negros americanos em saber mais sobre a realidade da escravidão. Com a mesma veia poética revelada em Moonlight, o diretor reduziu a violência a poucas mas explícitas cenas. A verdade dói — e não pode ser maquiada.

“É a história dos meus ancestrais”

RAÍZES - Jenkins: a verdade que não pode ser maquiada -
RAÍZES - Jenkins: a verdade que não pode ser maquiada – (Maria Laura Antonelli/Shutterstock)

Barry Jenkins falou a VEJA sobre a série The Underground Railroad.

Como abordar a crueldade da escravidão sem melindrar o espectador? Uma dificuldade era balancear a violência. Ela tinha de servir à história, e não atacar o público. Decidi que as cenas seriam poucas, mas reais. Era minha responsabilidade contar a verdade.

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Havia uma psicóloga no set para ajudar a equipe. Você precisou de atendimento? Sim, mas não foi minha escolha. Ela tinha autonomia e um dia me chamou para conversar. Eu tentei recusar, mas não poderia trabalhar sem passar pela sessão que se mostrou necessária. Ela percebeu que minha linguagem corporal estava diferente: a história pesou em mim.

Como foi filmar em uma fazenda que de fato havia sido escravagista? Interessante. Ali me reconectei com minhas raízes. Essa é a história dos meus ancestrais. Não sei qual minha origem na África, mas venho de pessoas trabalhadoras, que não podem ser resumidas à palavra escravo.

Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738

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