Em uma cidade do estado americano da Carolina do Sul, um homem com pinta de apresentador de circo conduz crianças brancas pelo Museu das Maravilhas Naturais. A atração ali é a “jornada de transformação” dos africanos — de selvagens em pessoas civilizadas. O homem destila absurdos e mentiras, como a de que os negros deixaram a África felizes rumo aos Estados Unidos, onde aprenderam a falar uma língua humana, o inglês, e tomaram pela primeira vez uma boa xícara de chá. “Eles usavam crânio humano como copo”, diz o apresentador, reafirmando a gratidão dos estrangeiros pela nova vida. De dentro da vitrine onde atua como modelo vivo em um campo de algodão cenográfico, Cora (Thuso Mbedu) observa o show de horrores. Ela não conheceu a avó, que foi arrancada de sua tribo na África. Mas, pelo que vivenciou como escrava até ali, Cora sabe que a palavra “gratidão” não se aplica à sua experiência.
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Ambientada no século XIX, quando a escravidão ainda era uma brutal realidade do país, a série The Underground Railroad, que acaba de chegar ao Prime Video, da Amazon, lança um olhar ácido sobre as feridas abertas do racismo e seu reflexo na América dos dias de hoje. Com dez episódios de produção deslumbrante, amparada em um orçamento de 150 milhões de dólares, a série narra a via-crúcis de Cora, uma escrava fugitiva que passa por diferentes locais em busca de algo que se pareça com a liberdade que ela desconhece. Adaptação do livro de mesmo nome do romancista Colson Whitehead, duas vezes vencedor do Pulitzer, The Underground Railroad engrossa o notável movimento de acerto de contas da população negra americana com narrativas deturpadas sobre seu passado — como o clássico …E o Vento Levou (1939), recentemente execrado por mostrar escravos felizes e submissos. “As mentiras ditas no museu representam o que pode acontecer quando os oprimidos não têm a chance de contar sua história”, disse o diretor Barry Jenkins em entrevista exclusiva a VEJA, pelo Zoom (leia mais abaixo).
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Oscarizado pelo exuberante Moonlight, Jenkins ouviu quando criança sobre a Underground Railroad, uma trilha de fuga entre o Sul escravagista e os estados livres do Norte, com paradas pelo caminho comandadas por abolicionistas brancos e negros. A palavra underground, traduzível como subterrâneo ou secreto, despertava nele a fantasia de que teria existido de fato um túnel e um trem — na verdade, era só um codinome: a trilha real se dava na superfície. A mesma fantasia pauta o livro de Whitehead e também a série: com a liberdade do realismo mágico, a rota transforma-se em uma ferrovia com locomotiva, e as estações são pontos da história humana.
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O museu apresentado no segundo episódio é um dos empregos de Cora após fugir dos maus-tratos recebidos em uma fazenda da Geórgia. Ela vislumbra um possível lar na nova cidade que prega o progresso: lá os negros são assalariados e aprendem a ler. A bonança se revela uma falácia, pois os negros participam de forma limitada da sociedade que os menospreza. Em outra passagem, Cora vê uma estrada ladeada por corpos de negros e brancos abolicionistas enforcados em árvores.
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A trama de tons pesados foi um desafio que Jenkins quase recusou — ele só aceitou o projeto após uma pesquisa do estúdio revelar o desejo dos negros americanos em saber mais sobre a realidade da escravidão. Com a mesma veia poética revelada em Moonlight, o diretor reduziu a violência a poucas mas explícitas cenas. A verdade dói — e não pode ser maquiada.
“É a história dos meus ancestrais”
Barry Jenkins falou a VEJA sobre a série The Underground Railroad.
Como abordar a crueldade da escravidão sem melindrar o espectador? Uma dificuldade era balancear a violência. Ela tinha de servir à história, e não atacar o público. Decidi que as cenas seriam poucas, mas reais. Era minha responsabilidade contar a verdade.
Havia uma psicóloga no set para ajudar a equipe. Você precisou de atendimento? Sim, mas não foi minha escolha. Ela tinha autonomia e um dia me chamou para conversar. Eu tentei recusar, mas não poderia trabalhar sem passar pela sessão que se mostrou necessária. Ela percebeu que minha linguagem corporal estava diferente: a história pesou em mim.
Como foi filmar em uma fazenda que de fato havia sido escravagista? Interessante. Ali me reconectei com minhas raízes. Essa é a história dos meus ancestrais. Não sei qual minha origem na África, mas venho de pessoas trabalhadoras, que não podem ser resumidas à palavra escravo.
Publicado em VEJA de 19 de maio de 2021, edição nº 2738
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