‘Vai na Fé’: as razões do sucesso da novela evangélica da Globo
O folhetim das 7 cativou espectadores desconfiados, atraiu os jovens e bombou nas redes
Em 2019, durante pesquisas sobre a audiência da novela Bom Sucesso, a autora Rosane Svartman pescou um dado importante: de cada grupo de dez espectadores da trama das 7 então exibida pela Globo, praticamente a metade deles se definia como evangélica. A informação bate com o crescimento dessa faixa da população no Brasil: de acordo com projeção do IBGE, os evangélicos devem ultrapassar pela primeira vez o total de católicos no país em 2032. Diante da constatação, a emissora viu como estratégia óbvia criar uma produção que agradasse a essa parcela do público mais afeita às tramas bíblicas da concorrente Record — e escalou Rosane para a missão. Daí nasceu Vai na Fé, novela das 7 que vem se mostrando um sucesso como há tempos não se via no horário. Protagonizada por Sol (Sheron Menezzes), uma mãe de família batalhadora, frequentadora de uma igreja neopentecostal, a trama mostra uma mocinha que se divide entre a fé e o emprego como dançarina e funcionária de Lui Lorenzo (José Loreto), cantor de axé decadente e mulherengo. A despeito das tentações da carne e de percalços como o racismo, ela não se desvirtua dos princípios.
Vai na Fé corrige erros do passado da própria Globo, que retratava os evangélicos de forma pejorativa, como acontecera com a hipócrita Karla em O Clone (2001) — a personagem de Juliana Paes se fingia de boa moça, mas era devassa às escondidas — e a Soninha Catatau vivida por Paula Burlamaqui em Avenida Brasil (2012) — uma ex-atriz pornô convertida em evangélica, mas que tinha modos vulgares. “A fé é um fator muito importante para o brasileiro. A ideia de mostrar a pluralidade da mulher religiosa, que pode ser mais de uma coisa, parecia um ótimo assunto para uma novela”, diz Rosane. De fato: passados 100 capítulos, a média da novela é de 23 pontos, maior ibope da faixa desde 2021, superando as duas antecessoras. Na segunda-feira 15, bateu seu recorde, com 26 pontos — maior audiência da Globo naquele dia.
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Vai na Fé se mostra potente, sobretudo, na internet: acumula mais de 1,8 milhão de menções no Twitter, número dez vezes maior do que a trama anterior, Cara e Coragem, no mesmo período. Nem o corte de um beijo lésbico entre as personagens Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman) e a consequente revolta da comunidade LGBTQIA+ afetaram seu desempenho. A autocensura teve razão tática: a Globo não quis afastar o público evangélico conquistado com tanto suor. No atual clima de polarização, a emissora não raro é demonizada por líderes do segmento, e temia que a trama fosse rejeitada. Isso não ocorreu: com sua fé inabalável e perfil que passa longe de estereótipos, Sol foi aprovada pelos fiéis.
A novela não é um marco apenas por incorporar com êxito o universo evangélico. Para além da religião, Vai na Fé revela-se a trama com mais atores negros na história da Globo — são pelo menos 27 profissionais creditados, ou mais da metade do elenco. “Saber que estamos criando um espaço na teledramaturgia é gratificante”, comemora Sheron Menezzes.
Se esse pacote de inovações funciona no ar de forma tão orgânica, sem parecer excessivamente didático ou forçado, isso se deve ao talento de Rosane Svartman para dialogar com um público que vai das senhoras noveleiras à geração conectada. Ela já demonstrava sua competência em Totalmente Demais (2015), parceria com Paulo Halm em que abordava o drama de pessoas vulneráveis das ruas, doenças mentais e até abuso sexual — tudo com uma leveza e frescor que revigoraram a faixa das 7.
Agora, Rosane se vale do mesmo arsenal ao transpor para a tela a vida do Brasil cristão. Por meio de personagens como Jenifer (Bella Campos), a novela demonstra que essa realidade comporta nuances. A jovem carrega os valores arraigados da religião, mas isso não a impede de ter mente aberta e ser amiga de Kate (Clara Moneke), moça espevitada que ama sua liberdade sexual. “Katelícia”, como ficou conhecida, tornou-se a figura mais carismática da produção. “Ela virou uma sensação por ser muito real. Isso cria identificação forte com o público”, diz sua intérprete, que tem ascendência nigeriana.
Não se pode minimizar, enfim, o peso de recursos frugais dos folhetins para dar liga à receita. Muito do apelo de Vai na Fé vem de outro elemento infalível: a música. Além de permitir participações de estrelas pop como Ludmilla e a dupla Maiara & Maraísa, as cantorias do extravagante Lui Lorenzo converteram-se em fenômeno nos streamings musicais. Só no Spotify, ele tem mais de 1,5 milhão de reproduções de suas músicas. “Sou marcado em vários posts com as coreografias. É um sucesso além do que imaginava”, celebra José Loreto. Nunca foi tão bom ver para crer.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2023, edição nº 2842
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