“Eu sou o doutor Augusto de Almeida”, diz o médium João de Deus com voz grave. “Salve, doutor Augusto de Almeida”, respondem os trabalhadores da Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, interior de Goiás. Após a introdução, o médium se vira para um paciente e diz que vai curá-lo. Mergulha uma tesoura recoberta de algodão em um líquido incolor e, sem delongas, enfia a lâmina em uma das narinas do homem, que mal se aguenta de dor. Ele gira o objeto dentro do nariz e abre a tesoura. Logo em seguida, abaixa a cabeça do paciente e deixa o sangue escorrer entre seus dedos e o mostra para a câmera, como se fosse um troféu. Em outro momento, corta as costas de uma mulher, passa o bisturi sob o olho de um homem e costura pontos no abdômen de outro paciente. “Pode carregar que ele está operado”, afirma para a câmera. Era assim que João Teixeira de Faria, ou João de Deus, como ficou mundialmente conhecido, “curava” as pessoas – ou melhor, se exibia fazendo isso na frente das câmeras.
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Clique e AssineAs cenas impressionantes estão no novo documentário original da Globoplay, Em Nome de Deus, que vai ao ar na noite desta terça-feira, 23, na Globo, na sequência da minissérie Aruanas. Depois da exibição, todos os seis episódios estarão disponíveis na plataforma de streaming da emissora. Com criação de Pedro Bial, a série mostra os bastidores de um dos maiores escândalos de abuso sexual do país. Mais que isso, contudo, expõe detalhes sobre a vida e a atividade do médium antes da fatídica noite de 7 de dezembro de 2018, quando Bial entrevistou a holandesa Zahira Mous. Tímida e camuflada, mas extremamente corajosa, a ex-paciente revelou ter sofrido abuso do famoso médium – e acabou abrindo espaço para que centenas de mulheres viessem a público relatar que também sofreram violência sexual nas mãos dele.
A produção é conduzida pelo relato de vítimas de João de Deus. Sete delas, de diferentes regiões do Brasil, concordaram em mostrar o rosto pela primeira vez e protagonizam as cenas mais impactantes do documentário. Sem nunca terem se encontrado, elas se unem em uma roda viva para conversar e ajudar uma às outras a superar os traumas vividos dentro da casa Dom Inácio. “Foi um trabalho de meses para convencer essas mulheres a falar na frente das câmeras. Mas todas aceitaram participar, porque queriam conhecer a Zahira. Elas tinham essa vontade de conhecer a mulher que fez tudo isso se tornar possível. Foi um momento muito bonito de presenciar”, revela Camila Appel, repórter que assina o roteiro ao lado do também diretor Ricardo Calil.
A roda de conversa, tida como a parte mais importante da produção pela equipe de documentaristas, foi gravada por cerca de oito horas, em um período de dois dias. Para a gravação do encontro ser a mais verdadeira possível, as mulheres foram colocadas em hotéis e camarins diferentes. Assim, o primeiro encontro entre elas aconteceria somente na frente das câmeras. No estúdio, para elas se sentirem mais à vontade, a maioria das câmeras foi operada por mulheres.
“Foi muito interessante ver essa mudança corporal, principalmente na Zahira. Quando a entrevistamos pela primeira vez, ela estava com roupas pesadas, escuras, cachecol, toda fechada. E quando gravamos a roda viva, ela estava com uma roupa leve, um vestido esvoaçante. Ela estava livre, havia exorcizado o trauma”, diz Bial. “Era como se fosse um casulo. No dia da gravação, ela se transformou em uma linda borboleta”, completa o diretor Ricardo Calil.
Em paralelo à produção do Globoplay, a Netflix também está produzindo um documentário sobre a vida do médium. Ele, que tem uma fortuna de 100 milhões de reais e está com os bens bloqueados, reclamava que não tinha dinheiro nem para pagar seus advogados. Mas teve uma parte de seu problema solucionado: a empresa Grifa Filmes, que produz o documentário, fechou no final de abril um termo de compromisso com João de Deus e a Casa Dom Inácio de Loyola. Pelo contrato, João de Deus recebeu 70 mil reais adiantados da produtora que fará o documentário para a Netflix em troca de seus arquivos pessoais. São fotos, documentos e gravações mostrando as curas. A assessoria do Globoplay afirma que, ao contrário da Netflix, “nem o Globoplay nem a produção do documentário pagou nada a João de Deus ou a qualquer pessoa ligada a ele”.
Condenado a mais de 40 anos de prisão por estuprar cinco mulheres em Abadiânia, João de Deus está em prisão domiciliar desde março, em razão da pandemia do novo coronavírus. O médium alegou que, aos 68 anos, faz parte do grupo de risco e sofre de doenças graves – precisaria, segundo ele, de um lugar menos insalubre para cumprir a pena.