A espetacular Aída dos Santos, a única mulher da delegação brasileira nos Jogos de 1964, foi personagem revolucionária e guerreira, como vimos no episódio anterior desta série. Ela abriu a porta para as mulheres na história olímpica do Brasil. Mas Tóquio, no início dos anos 1960, tinha novidades que ainda precisam ser entendidas – e os estrangeiros que ali desembarcaram, se surpreendiam a cada esquina.
O idioma será sempre um obstáculo, por vezes sutil, por vezes intransponível, para os forasteiros em Tóquio. Tomo emprestado um comentário da tradutora Leiko Gotoda a respeito da edição para o português do imprescindível Em Louvor da Sombra, de Junichiro Tanizaki (1886-1965), elogio delicado à tradição japonesa. Em um trecho em que o autor descreve como é e qual a relevância da construção dos banheiros (lá chamados de latrinas) para a cultura e a arquitetura japonesas, Leiko comenta sobre o significado literal de uma palavra e a importância de traduzi-la visando a exprimir a ideia do autor em outro idioma: “(…) furyu subentende furyu inji, expressão que o dicionário da língua japonesa define como diversões requintadas, apreciação da natureza e sensação de prazer advinda da composição de versos e poemas. No referido trecho traduzi, portanto, a frase do escritor Ryoku Saito citada por Tanizaki, ‘furyu wa samuki mononari’ (‘a elegância é fria’, em tradução ao pé da letra, no meu entender inadequada em português), como ‘o frio estimula a estesia’, pois julgo que nesse contexto o termo furyu pode ser sintetizado como ‘estesia’, no sentido de capacidade de perceber o sentimento da beleza, conforme o Houaiss”. A mãe de Leiko, aliás, era irmã de Junichiro.
Ao pé da carta de 15 de outubro de 1964, Raquel, que sabia vários idiomas, com especial apreço pelo francês, mas não o japonês, escreveu para o pai em Tóquio, ao brincar com a dificuldade de compreensão: “Já dá para saber alguma coisa de japonês, além daquelas 7 palavras?”. Sim, já dava, porque a Olimpíada de Tóquio foi palco de uma revolução do design, imaginada de modo a evitar desencontros, preparada para incentivar a estesia sem filtros, apesar de algum filtro sempre existir. Naqueles Jogos de 57 anos atrás, pela primeira vez os organizadores de uma Olimpíada contrataram uma equipe encarregada de criar um vocabulário completo de pictogramas – aqueles símbolos atrelados a cada modalidade esportiva, hoje sobejamente conhecidos, que apareceram céleres na cerimônia de abertura de 2021, mas que então viviam sua infância. Foi um jeito de os estrangeiros não se perderem em Tóquio – e Neno, meu avô, seguia o que via, por trás das lentes grossas. Era como se tivesse aprendido muito mais do que aquelas sete palavras, que eu nunca soube quais eram, e muito possivelmente minha mãe listava por brincadeira. A linguagem de desenhos, a dos pictogramas, foi concebida por Yoshiro Yamashita, que se inspirou no Isotype, um conjunto de signos criado no início do século XX pelo filósofo, sociólogo e economista austríaco Otto Neurath. O Isotype é uma sigla para International System of Typographic Picture Education, ou sistema internacional de educação tipográfica pictórica. Foi elaborado para facilitar a comunicação não verbal. Os pictogramas de Tóquio 2020, ou melhor, 2021, são inspirados naqueles de 1964.
Mas o que talvez tenha dado a Tóquio o ouro de desenho, em 1964, para além do fabuloso Ginásio Nacional Yoyogi, projetado por Kenzo Tange, mescla de modernismo com arquitetura japonesa, seja o logotipo da competição. Criação de um gigante das artes gráficas, Yusaku Kameshura, que trabalhara para a modernização de marcas como a Nikon, de câmeras de fotografia, e a TDK, de fitas cassete, quando fitas-cassete ainda giravam. O emblema de Kameshura para os Jogos, aparentemente inspirado na bandeira nipônica, ajudou a revitalizar a imagem do Japão no pós-guerra. A logomarca da Olimpíada anterior, em Roma, usara a clássica e batida imagem de Rômulo e Rêmulo e o Capitólio. O criador oriental foi radicalmente heterodoxo: um círculo vermelho em cima dos anéis olímpicos dourados e “Tokyo 1964” escrito numa tipologia condensada, sem serifa (aquele tracinho que finaliza certas letras). Foi revolucionário antes de seu tempo. E havia toques de sutil genialidade. A marca era vertical – depois celebrada em pôsteres –, e não horizontal como o da bandeira original. Os não japoneses, apostava Kameshura, veriam apenas o sol vermelho, e não o estandarte do Japão. O ícone seria aplicado no pai de todos os cartazes da mais do que centenária história olímpica: o pôster com os velocistas, de todas as raças, na largada dos 100 metros rasos. Poucas imagens aludem tanto à glória e à diversidade das Olimpíadas – e ainda agora é vendida nas ruas de Tóquio, ali onde só podem circular cidadãos locais, por causa do surto do novo coronavírus. Estrangeiros não são autorizados a entrar em restaurantes e lojas – condição que, transportada para 1964, deixaria o Neno fulo da vida, “porca miseria!”, ele que gostava de voltar das viagens carregando presentes para a tropa toda. O Neno sempre tinha uma lista de pedidos em mãos, como veremos no próximo episódio, no ar em 2 de agosto.