Como é viver um dos únicos quatro delegados negros no Brasil dos anos 1940
Essa é a missão de Jorge Lucas na novela “Além da Ilusão”, de Alessandra Poggi, na TV Globo. Em conversa com VEJA, ator fala de representatividade e racismo
Jorge Lucas, 54 anos, vem de dois papéis na TV Globo que, a seu ver, são bastante emblemáticos para a discussão da maior participação de atores negros em telenovelas no país. Primeiro foi o médico Mauri em “Bom Sucesso”, em 2019; agora é o delegado Salvador, em “Além da Ilusão”. A novela de Alessandra Poggi se passa na década de 1940, quando só havia quatro delegados negros em atuação no país. Na véspera dos 134 anos da abolição dos escravizados, Jorge, que é dublador há três décadas, fala de representatividade e racismo.
Você interpreta um delegado em “Além da ilusão”. Isso é um sintoma de mudança de perspectiva para papéis oferecidos a atores negros na TV?
Claro! Na década de 1940, quando se passa a trama, o Brasil tinha apenas quatro delegados negros catalogados. E eu represento um deles. Em “Bom sucesso”, fiz um médico, profissão sempre ocupada – e representada – por brancos. Lá estava eu fazendo um médico negro extremamente sapiente do que fala em cena. Alberto (papel de Antônio Fagundes) fica quieto, ouve e obedece. A TV Globo cresce, a meu ver, junto com a conscientização da sociedade, não só na questão racial, mas também na diversidade sexual e no empoderamento feminino.
A que se deve essa maior visibilidade?
Há maior conscientização da sociedade pela importância e do peso da gente nessa mesma sociedade. Somos alicerces socioeconômicos, estamos em todas as áreas, desde que fomos trazidos por navios negreiros. Que haja cada vez mais espaço para Tais Araújo, David Junior, Paulo Lessa, Dandara Mariana, Olivia Araújo, Guilherme Silva, Larissa Nunes, tantos e tantos…
Consegue dimensionar a importância desse destaque?
É forte, representativo. Tem uma cena linda, quando o Salvador diz: “Quem manda nessa cidade sou eu, não o dinheiro”. Ele fala não de forma autoritária, mas para impor autoridade. Algo como: “A lei aqui sou eu!”. É importante esse tipo de cena. Digo cada vez mais o quanto é importante que nós, artistas negros, ocupemos personagens altivos, de poder, de visão, construtivos, para que os jovens também queiram estar lá. Não só na TV, porque nem todo mundo é artista, mas que se inspirem em ser médicos, delegados, engenheiros, arquitetos…
Casos recentes de racismo na TV e na sociedade podem ter contribuído para essa mudança de perspectiva?
Olha, fiz “Bom Sucesso”, novela de ótima audiência, que tinha 30% do elenco com negros. As novas produções trazem questões raciais, sim, mas também são compostas com diferentes talentos de profissionais negros. Isso mostra à população que somos excelentes artistas. A TV precisa representar essa sociedade. Vejo TV desde pequeno. Não estamos mais fazendo apenas a empregada, o marginal, a presidiaria, a favelada ou o camelô. Estamos, cada vez mais, fazendo núcleos de famílias negras, com personagens de maior poder e autoridade. Alguém pensou: “Vamos colocar o Jorge Lucas para fazer o delegado nessa história dos anos 1940”. Isso é forte!
Como convive com o racismo no dia a dia?
O racismo sempre existiu, é uma mácula na história da humanidade. O preconceito racial no Brasil não é velado. Só nós negros sabemos o quanto somos vítimas do racismo, assim como só uma mulher sabe o quanto é aviltada por um imbecil só pela roupa que veste. Só um negro sabe o que é entrar numa loja e ter um segurança na sua cola, simplesmente porque ele te julgou pela aparência, como já aconteceu várias vezes comigo. Está na hora da gente mudar.