O Analista de Bagé, lendário personagem criado pelo escritor Luis Fernando Veríssimo, diria que o Grammy é “mais ortodoxo do que Biotônico Fontoura”. As escolhas desse prêmio, atualmente em sua 62ª edição, são baseadas pelo tradicionalismo, desempenho comercial e pela falta de conhecimento de estilos mais, digamos, fora do padrão – o que explica a vitória do grupo de rock progressivo Jethro Tull sobre o Metallica na categoria “heavy metal”, derrapada que até hoje rende boas piadas. Mas há certos fenômenos impossíveis de serem ignorados até pela indústria. As jovens e poderosas Bilie Eilish e Lizzo foram as grandes vencedoras da cerimônia de ontem, realizada no Staples Center, em Los Angeles. Billie, de 18 anos, venceu em cinco categorias, incluindo as principais – disco, gravação e canção do ano, além de nova artista. Um fato que não acontecia desde 1981, com a vitória de Christopher Cross. A intérprete de Bad Guy é também a artista mais nova a ganhar um prêmio principal, batendo Taylor Swift, que tinha 20 anos quando recebeu sua primeira estatueta. Lizzo, que há mais de uma década tenta sucesso no showbiz, ganhou em outras três categorias. Outro grande vencedor da noite foi Tyler the Creator, que faturou o melhor disco de rap por IGOR.
Um dos acertos da cerimônia foi ter escalado Alicia Keys como apresentadora. A cantora de 39 anos teve carisma, graça e elegância para comandar o desfile de convidados e liderar uma homenagem ao jogador de basquete Kobe Bryant, que tinha morrido poucas horas antes da premiação. Ela e o grupo vocal Boyz II Men cantaram It’s Hard to Say Goodbye to Yesterday, hit de Alicia, em homenagem ao esportista (Bryant também recebeu tributos de Lizzo e do grupo de rap Run-DMC). O Grammy, aliás, foi pródigo em produzir lágrimas. Algumas falsas, como a “emoção” do pai de Camila Cabello durante a performance da cantora, e outras de constrangimento no fraco musical de Ariana Grande. O único momento de emoção verdadeira – além dos tributos a Bryant – se deu com Demi Lovato. Foi sincero o choro da cantora em Anyone, escrita poucos dias antes de sofrer uma overdose.
Em matéria de tributos, o Grammy ainda deixa a desejar. A seleção de sucessos de Prince foi triturada pela escolha inadequada do cantor Usher e sua interpretação proibida para diabéticos. Sensualidade zero na execução de músicas em que a libido é mais do que necessária. Chamar o casal Ozzy e Sharon Osbourne para ancorar a premiação de duas categorias também pode ser considerado uma espécie de tributo – na semana passada, o astro do heavy metal declarou ser portador da doença de Parkinson. Mas foi um erro. Ozzy não emocionou a plateia, tinha dificuldades em falar e sua comunicação com Sharon foi nula. Por outro lado, o Aerosmith se homenageou com categoria. Ao lado dos rappers do Run-DMC e sem o baterista Joey Kramer (que foi dispensado por se recusar a fazer um teste para voltar a tocar com os roqueiros), eles levantaram a plateia ao desfilar os hits Livin’ o the Edge e Walk This Way, um proto-rap dos anos 70.
Algumas apresentações musicais estiveram perto do sublime. A emoção contida de Billie Eilish, que contrastou com a explosão de Lizzo na abertura da premiação com Truth Hurts. Tyler de Creator, contudo, abocanhou o prêmio de performance da noite. Sua EARFQUAKE teve o grupo vocal Boyz II Men, Charlie Wilson (ex-Gap Band, um dos maiores grupos de funk dos anos 80) e um festival de chamas.
Billie Eilish, Lizzo e Tyler the Creator brilharam numa premiação que sempre foi marcada pelas escolhas ortodoxas. Na categoria Instrumental, a dupla Rodrigo Y Gabriela venceu com seu Mettavolution, mistura de heavy metal e ritmos mexicanos – uma ótima surpresa. Porém, na premiação de Melhor Disco de Rock, o grupo angeleno Rival Sons perdeu para o insosso Cage the Elephant. Feral Roots, do Rival Sons, foi um dos grandes álbuns do ano passado, um atualização do hard rock dos anos 70. Certas injustiças doem mais que a famosa joelhada do Analista de Bagé.