É lorota que o Brasil tem muito feriado
Folgas dobradas e 'dolce far niente' que dão inveja ao calendário brasileiro: os europeus valorizam os dias livres, sem culpa nem discursos falaciosos
Crescer é colecionar traumas, diria o pessimista. Realista do tipo que lida bem com os fatos acumulados nas rugas, nas cicatrizes e nos fios de cabelo que rareiam, coço aqui a iminente calvície e afirmo: crescer é conviver com os traumas.
Um deles é a culpa do feriado. Porque o discurso proeminente da infância, para mim, era que o trabalho engrandece, posto que é nobre; já o ócio, a vagabundagem, o dolce far niente, ah, essas coisas são o próprio diabo empilhando quinquilharias para inventar novas armadilhas em sua oficina cheia de lugares-comuns, desejos frugais e sensualidades para massagear almas.
E o discurso vinha impregnado de penitência, mea-culpa, por vezes com um tantinho de autocomiseração, noutras com dolo de ferir o amor-próprio mesmo. “O Brasil está assim porque tem muito feriado”. “Brasileiro adora não trabalhar”. “Tem de acabar com isso, é muito feriado”. “Pra que tanta folga?”.
Por muito tempo eu comprei essa verdade, admito. Se não total e completamente, porque sempre gostei de ter meu tempo livre nem que seja para ler um livro diferente dos que preciso para trabalhar ou assistir a um filme bobo para desanuviar cérebro e fígado, ao menos no âmbito de que, jornalista, desde cedo encarei jornadas capazes de atropelar dias santos, ignorar emendas sacras e profanar de todo jeito o calendário.
Em algum momento da última década, um amigo que morava na Bélgica me deu a letra. “Cara, aqui tem muito mais feriado do que no Brasil. Sabe as datas religiosas de domingo? Eles jogam para a segunda. Tipo Pentecostes…”.
Só que minha ficha só caiu, na verdade, quando eu vim morar na Europa.
E vi que o trabalhador brasileiro vive uma mentira. Se não imposta, muito conveniente — aos seus empregadores, os patrões, os empresários. Perdoe o marxismo improvável e involuntário. Mas é lorota que o Brasil tem muito feriado.
Hoje, 15 de agosto, é feriado aqui na Eslovênia. Sabe por quê? Dia da Assunção de Nossa Senhora. E estamos falando de um país muito mais laico do que o Brasil. Oficialmente, pouco mais de 50% da população é católica — mas a maioria não segue. Pelo menos 13% são ateus declarados — talvez muitos outros o sejam, sem terem nem vontade de declarar, porque simplesmente não ligam.
É feriado aí no Brasil? Não. Claro que não.
Mas é feriado em boa parte dos países europeus — herança romana, quando a data era o Feriae Augusti, o Ferragosto pagão incorporado pelo cristianismo com esses contornos marianos.
Isso pouco importa, no frigir dos ovos. Para o esloveno, e a maior parte dos europeus, é um dia a mais para curtir o verão.
Mas já que a religião foi trazida à baila, quero atentar aqui para outro feriado esloveno importante: 31 de outubro, dia da Reforma Protestante. É aquela data em que o monge Martinho Lutero, em 1517, afixou suas tais 95 teses em frente a uma igreja germânica. E causou um furdunço daqueles.
Pois bem: seguidores da religião luterana são menos de 1% da população eslovena.
Se é dia de folga, entretanto, os demais 99% — incluam-me nesta por favor — não vão reclamar. E nem ficar com culpa pela vagabundagem.
A Eslovênia é a terra dos feriados dobrados: um dia para beber, outro para curar a ressaca
Existe outra peculiaridade dos feriados eslovenos, uma coisa que vai provocar inveja em vocês, queridos conterrâneos brasileiros: o feriado dobrado. Por exemplo: folga nos dias 25 e 26 de dezembro. Neste caso até tem justificativa. Por uma coincidência, o Dia da Independência do país cai exatamente no dia seguinte ao Natal.
Não quero lembrar aqui que também se celebra a independência, na verdade o Dia da Nação ou do Estado, em 25 de junho. Não vou entrar nas minúcias a respeito das duas datas, o Google está aí funcionando para quem precisar.
Prossigo tratando dos feriados dobrados apenas para citar que o Dia do Trabalho na verdade são dias, no plural: 1º e 2 de maio. Dizem que o passado socialista justifica a artimanha que honra o proletariado. Mas o que dizer do Ano-Novo, com feriado decretado nos dias 1º e 2 de janeiro? Só consigo encontrar explicação na prosaica história de que é preciso um dia para beber e outro para curar a ressaca.
Segundo a Wikipédia, o Brasil tem de 9 a 12 feriados por ano. Há variações, evidentemente, porque na conta precisam entrar os feriados locais, regionais, etc. Na Alemanha, são de 10 a 13. Aqui na Eslovênia, 14. Mas podemos trazer outros exemplos: Portugal, a Romênia, a Eslováquia e a Suíça, com 15; o Japão e a Islândia, com 16; a Áustria, com 18; ou até mesmo a Índia, onde o número de dias livres pode chegar a incríveis 42.
Alguém fala que japonês é folgado porque lá “tem muito feriado”? Alguém fala que a Suíça “para dar certo precisa acabar com esse monte de folga”?
Não.
Na minha singela opinião de brasileiro, proletário e imigrante, de quem incontáveis vezes sacrificou os legítimos feriados por conta de plantões doloridos em uma redação de jornal, estamos aqui diante da síndrome do viralatismo militante que acomete a nossa brasilidade.
E, neste caso, o tradicional complexo ganha um ingrediente extra: a falácia da meritocracia, temperada com a arrogância do pequeno empresário que acha que os direitos trabalhistas são a causa do seu próprio fracasso — se não econômico-financeiro, pessoal.
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