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Walcyr Carrasco

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Quebrando a quarentena

Saí de casa e experimentei pela primeira vez o novo normal

Por Walcyr Carrasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h20 - Publicado em 20 nov 2020, 06h00
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  • Juro. Até agora fui um dos mais radicais seguidores do isolamento social. Moro em um condomínio, no campo, e passei esses meses olhando o lago, visitando os patos… Todo o tempo fui alvo de tentações. Amigos que iam a festas secretas, gente que só queria bater um papo… E se ofendiam se eu dizia não. “Mas eu também faço quarentena!” — respondiam. Coisa nenhuma. Há uma categoria de pessoas que sai todos os dias, passeia o tempo todo, até entra em sites de relacionamento para encontros com desconhecidos. Mas tem convicção de que mantém o confinamento. Fato: as ruas estão cheias, as praias, lotadas… Mesmo assim, eu e um grupo de amigos nos mantivemos radicais.

    É óbvio. Tudo que eu esperava era um pretexto. Já li todo Dostoiévski, estou estudando francês on-line, vi vários filmes coreanos, faço jejum intermitente… Estou que não aguento mais! O pretexto veio com um projeto para um livro. Saí para encontrar uma terapeuta seriíssima, que me falou de sua experiência com crianças — essencial para o livro. Muito consistente. Só não sei se era bonita porque não tirou a máscara um segundo. Ela me aconselhou a comprar uns brinquedos para entrar no universo infantil.

    Ahhhh… Voei para o Shopping Villa­Lobos, em São Paulo. De máscara. Só então pude entender o novo normal. Ainda no carro, mediram minha temperatura. Desci. Todo mundo de máscara. Assim como se eu estivesse em um filme de ficção científica. Encontrei o brinquedo, essencial para entrar no universo do meu personagem. Imagino que o vendedor estava sorrindo. Mas talvez não, poderia estar prestes a me morder.

    “Deparei com uma linda decoração de Natal. Como assim, o Natal já está chegando? Onde foi parar o resto do ano?”

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    Fui comer em um restaurante ótimo, de carne, que, juro, tem a melhor coxinha da minha vida (sou viciado em coxinhas). Ambiente de nave espacial em filme trash. Todos os garçons de máscara de plástico, transparente. Álcool em gel na mesa, para passar nas mãos a cada segundo. Cada pessoa sentada a quilômetros da outra. Resolvi caminhar e deparei com uma linda decoração de Natal. Como assim, o Natal já está chegando? Onde foi parar o resto do ano?

    Fiz uma foto junto a um gigantesco laço vermelho. Duas mulheres apresentaram-se como fãs de meus livros e novelas. Enfim, queriam foto. Topei, admirado de terem reconhecido só pelos olhos (ou pela barriga, pois a calça escorregou e o umbigo ficou à mostra). Gentilmente, eu me propus a tirar a máscara para a foto. Tirei. Elas não. Não confiavam em mim! Voltei às pressas para o estacionamento, sem ninguém mais se aproximar. Acabaram-se os sorrisos e os cumprimentos, que antes eu trocava no simples contato humano.

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    Cheguei em casa imerso em culpa. E se contaminasse alguém? Tirei a roupa, tomei banho e teria entrado em uma banheira de álcool em gel se pudesse. Um amigo viu meu post e ligou. Disse que sou maluco, não posso sair. Tem 30 anos. Acaba de pegar Covid, foi horrível. Avisou que a segunda onda vem aí. Estou de novo recolhido, pensando: “Há futuro?” e “Qual vai ser?”. Caí na real: nem mesmo comer uma feijoada com amigos será como antes.

    Publicado em VEJA de 25 de novembro de 2020, edição nº 2714

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