Freud mudou a maneira de pensar sobre nós mesmos. Fosse religioso, sua tumba seria objeto de peregrinação, seus ossos miraculosos, exibidos em um altar. A adoração de muitos psicanalistas por Freud é semelhante à de um fiel a Santa Terezinha. Repetem suas palavras, como mantras. Mas não tenho nada a ver com isso. A não ser que me trate com algum deles. Freud é o fundador da psicanálise, o primeiro a trazer o inconsciente para a ordem do dia. É profundo, instigador. Mas o jargão psicanalítico entrou no cotidiano das pessoas. Encontro com um amigo e reclamo de que estou com dor de estômago. “Deve ser psicológico.” Sorri, satisfeitíssimo com o rápido diagnóstico. Só que nunca estudou psicologia ou psicanálise. Seria impossível explicar as teorias de Freud aqui, resumidamente. Mas sou obrigado a conviver diariamente com palavras como “neurose”, “trauma”, “inconsciente”. Há algum tempo, uma conhecida pediu meu apartamento no Rio emprestado para passar uma temporada. Respondi que não, nunca empresto. Meu motivo: eu fico bastante no Rio, trabalhando, e a convivência com quem está de férias não dá certo. O comentário dela com um amigo: “Ele deve ter algum trauma”. Quer dizer, eu não quero emprestar o apartamento e, por causa disso, tenho um episódio terrível segregado nas profundezas do meu inconsciente (eta, Freud)? O jargão psicanalítico virou um tipo de fé. Já vi alguém comentar, sobre um assassino cruel, que certamente agia assim devido a traumas de infância. Não tenho formação para saber. Mas o psicologismo transformou-se em uma nova fé, que tudo explica. E, assim, “perdoa”.
“É difícil conviver com essa selva de conceitos psi. Eu tento, mas quase nunca entendo o que querem dizer”
Ou complica. Uma expressão que veio à tona é “ato falho”. Está banalizada. Em linhas rápidas, é quando você quer dizer algo e fala outra coisa, que o denuncia. Um amigo certa vez trocou o nome da esposa pelo da amante. O resultado foi uma DR de proporções inacreditáveis. Eu mesmo já aprontei coisas do tipo várias vezes. Quem nunca? Imagino que, em outros séculos, seria uma simples troca de nome. Com a influência maligna do psicologismo no cotidiano, vem logo uma explicação. E o falho que se livre.
Há situações mais cruéis. É comum acreditar-se que o câncer tenha uma origem psicológica. Uma amiga, já falecida, teve no seio. Encontrei com ela, em pleno processo, estava melhor e acreditando na cura. Reclamou: “O pior é quando as pessoas dizem que é psicológico, que tudo depende da minha atitude. Como se, além de tudo, eu fosse a culpada da minha própria doença”.
O ser humano é complexo. Mas a banalização da psicologia criou conceitos tão rígidos quanto os dos evangélicos. Se é psicológico, depende de você, de sua atitude, e você mesmo pode curar-se. Mas, se alguém aprontou feio, é preciso explicar, entender e superar. É difícil conviver com essa selva de conceitos psi. Eu tento, mas quase nunca entendo exatamente o que querem dizer. Só não me preocupo porque também ninguém sabe o que está dizendo. Os ossos de Freud devem estar chacoalhando na tumba.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730