Vida ou reality show
A compulsão em gravar e postar a rotina alheia passou dos limites
Eu estava à procura de um livro fora de circulação. Finalmente encontrei alguém que tinha. Gentilmente, o dono se ofereceu para trazê-lo. Aceitei. Quando chegou em minha casa, convidei para entrar, tomar um café. Mal botou os pés na sala, ele sacou o celular. Começou a gravar tudo, falando que era minha casa, mostrando os quadros, invadindo minha intimidade. Eu já estava disposto a atirar o livro na cabeça dele. Enfim, pedi para parar. Ficou ofendidíssimo. Lembrou do esforço que tinha feito para trazer o livro. A visita se transformou em um bate-boca. Ele foi embora, e não nos falamos desde então. É incrível como as pessoas fazem tudo por um story. Acham absolutamente normal falar da vida, dos hábitos e da moradia de alguém. Pode parecer surpreendente, mas há quem prefira não fazer alarde da própria intimidade.
Há algum tempo, uma conhecida fez uma plástica. Contratou um enfermeiro para acompanhá-la em casa. Dois ou três dias depois, ainda de cama, um amigo avisou: o enfermeiro estava postando toda a casa. Foi verificar. Descobriu que ele passava a maior parte do tempo fazendo fotos e vídeos. Inclusive dela, que é uma pessoa conhecida, com os curativos. Horrorizada, ela criou suspeitas. As fotos poderiam atrair um ladrão. Sua aparência estava péssima, e os pontos e as cicatrizes seriam um prato cheio para a imprensa (só não saíram porque o rapaz quase não tinha seguidores). Naquela época, ter nuvem virtual não era tão comum. O rapaz não deveria ter. Não teve dúvidas: ela resolveu dar um jeito no celular do enfermeiro.
Tramou com sua funcionária do lar. Enquanto o enfermeiro cuidava de minha amiga, a funcionária mexeu nas coisas dele e roubou o celular. Escondeu-se na cozinha. Dali a pouco, o rapaz deu por falta do aparelho. Entrou em pânico — como viver sem celular?
“Me sinto invadido quando estou num restaurante e começam a fazer stories. As pessoas perderam a noção”
Minha amiga fez um teatrinho: “Onde pode estar esse celular?”. A funcionária subiu para “ajudar” a procurar. O celular começou a tocar no bolso dela, que deu uma desculpa e fugiu. O enfermeiro tinha certeza. Tinha deixado o celular em seu quarto. A melhor atitude que a funcionária encontrou foi passar com o carro em cima do celular. Deu rolo. A confusão foi tremenda. Minha amiga arcou com o valor de um novo aparelho. O enfermeiro foi embora soltando fogo pela boca.
Eu me sinto invadido quando estou em algum lugar — um restaurante, por exemplo — e alguém começa a fazer stories. As pessoas perderam a noção. Não pedem mais licença. Já vão gravando, postando. Pior, angariando seguidores à custa da intimidade alheia. Outro dia um amigo veio me visitar. Como moro longe, ele ainda não conhecia minha casa. Entrou e disse entusiasmado: “Sua casa é muito instagramável”. Respondi que preferia não ser postado. Ele não se conformava. Gemia: “Mas aquela janela… ia ficar tão bem no meu Instagram!”.
Há quem não tenha a menor ideia do que é preservar a intimidade alheia. Querem transformar a vida em um contínuo reality show. Socorro, estou fora dessa.
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800