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A briga cinematográfica de uma família judia para reaver tela de Picasso

O caso ilumina a relevância da recuperação de obras furtadas pelo nazismo como ferramenta de verdade histórica

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h50 - Publicado em 4 fev 2023, 08h00
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  • MULHER PASSANDO ROUPA, LA REPASSEUSE - Obra-prima da chamada Fase Azul de Picasso, entre 1901 e 1904, a tela é um dos destaques do Museu Guggenheim, de Nova York. Os descendentes de Karl e Rosi Adler, forçados a fugir da Alemanha nazista em 1938, a querem de volta -
    MULHER PASSANDO ROUPA, LA REPASSEUSE – Obra-prima da chamada Fase Azul de Picasso, entre 1901 e 1904, a tela é um dos destaques do Museu Guggenheim, de Nova York. Os descendentes de Karl e Rosi Adler, forçados a fugir da Alemanha nazista em 1938, a querem de volta – (David Heald/Guggenheim Museum/.)

    Pintado na chamada Fase Azul de Pablo Picasso, entre 1901 e 1904, a tela a óleo Mulher Passando Roupa (La Repasseuse, em francês) é celebrada como marco da sensibilidade e emoção com as quais o pintor espanhol nascido em Málaga retratava os trabalhadores braçais. A paleta cinza-azulada evoca a melancolia do cotidiano, possível metáfora da própria vida do artista em seus primeiros passos franceses. La Repasseuse tem, contudo, uma outra camada — literalmente. Em 1989, a restauração do quadro, exposto no Museu Guggenheim, de Nova York, revelou traços subjacentes ao desenho que se vê. Por meio de câmeras infravermelhas revelou-se uma outra figura, a de um homem, em sentido invertido, como se estivesse de cabeça para baixo. Estudiosos de arte acreditam ser a figura de Benet Soler, um alfaiate de Barcelona, amigo de Picasso, que o ajudava na temporada de vacas magras, de pobreza, antes da fama. Na semana passada, o mundo descobriu que a Mulher Passando Roupa não vive em paz, e as pinceladas de história a tornam ainda mais enigmática e fabulosa como registro de nosso tempo.

    Os descendentes de Karl e Rosi Adler, judeus forçados a fugir da Alemanha nazista em 1938, à véspera da eclosão da II Guerra, pedem a devolução da obra-prima que pertencera ao casal. A trama é cinematográfica. Em 1916, a pintura foi comprada por Heinrich Thannhauser, dono de uma galeria de arte em Munique. Os Adler adquiriram a obra, mas, quando fugiram do país, venderam-na de volta para o filho de Thannhauser, Justin, que já havia escapado para Paris, pelo equivalente a 1 552 dólares — cerca de 32 000 dólares de hoje, ou 166 000 reais. Ao morrer, em 1976, Thannhauser legou como testamento sua grande coleção de arte para o Guggenheim, que incluía também exemplares de Édouard Manet, Edgar Degas e Paul Gauguin e Vincent Van Gogh.

    Por décadas, a pintura de Picasso permaneceu na coleção sem ser contestada, mas, em 2014, uma das netas dos Adler descobriu a triste aventura da família com a passadeira. Desde então, o museu e os herdeiros disputam a propriedade, que culminou no processo aberto em um tribunal no­va-iorquino. “Adler não teria se desfeito da pintura na época e pelo preço que o fez, a não ser pela perseguição nazista à qual ele e sua família foram e continuaram a ser submetidos”, escreveram os advogados dos herdeiros. Eles argumentam que o valor de venda estava muito abaixo do valor de mercado. Apenas seis anos antes, Adler recebera uma proposta de 14 000 dólares pela peça, mas decidiu não vendê-la. Os representantes do Guggenheim rebatem: declararam “levar questões de proveniência e reivindicações de restituição extremamente a sério”, mas “acreditam que a reclamação não tem mérito”, por não ter havido pedidos anteriores de propriedade de um Picasso muito conhecido.

    PERSONAGEM DE CINEMA - Maria Altmann e a Adele Bloch de Gustav Klimt: vitória contra o governo da Áustria -
    PERSONAGEM DE CINEMA - Maria Altmann e a Adele Bloch de Gustav Klimt: vitória contra o governo da Áustria – (Lawrence K. Ho/Getty Images)

    O episódio atual é retrato de um prolongado embate que ultrapassa as artes. Para as entidades judaicas, a recuperação de telas saqueadas ou vendidas a valores aviltados representa uma compensação política — um gesto da humanidade contra o terror do Holocausto promovido por Hitler. De acordo com os Princípios de Washington sobre Arte Confiscada pelos Nazistas, assinado em 1998 por 44 nações, “medidas devem ser tomadas rapidamente para alcançar uma solução justa, reconhecendo que isso pode variar de acordo com os fatos e circunstâncias de um caso específico”. Em 2016, uma lei aprovada pelo Congresso americano padronizou a recuperação de obras levadas pelo horror da guerra — estima-se em mais de 600 000 —, o que não impede as prolongadas batalhas jurídicas.

    O caso mais conhecido — levado ao cinema em A Dama Dourada, de 2015, com Helen Mirren — é o de Maria Altmann, uma mulher que processou seu país de origem, a Áustria, para reaver obras de arte subtraídas da família, em especial o famoso retrato de Adele Bloch-Bauer de Gustave Klimt, com incrustações em ouro. A briga pela arte surrupiada pelo ódio como política de Estado é uma maneira importante para não esquecer o terrível passado da civilização, de modo que ele não se repita.

    Publicado em VEJA de 8 de fevereiro de 2023, edição nº 2827

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