Nos anos de 1930, Agatha Christie, a papisa dos romances policiais, imortalizou em Assassinato no Expresso Oriente o lendário trem que, desde o século XIX, serpenteava a bela rota entre Paris e Istambul em uma jornada de três noites cercada de luxo. No livro, que virou filme, o detetive belga (e que ninguém o tome como francês) Hercule Poirot desvendava um assassinato ocorrido nos suntuosos vagões que abrigavam a fina flor europeia, o “trem dos reis”, como ficou conhecido. As cabines eram então como apartamentos parisienses, com seus ornados papéis de parede, mobiliário Luís XIV e lençóis de seda. À mesa, servia-se comida dos mais estrelados chefs ao som dos melhores músicos da época. Surgiram outros desses comboios cheios de regalias, que prosperaram embalados pela ideia de que o traslado já era a própria viagem. Mas daí veio a II Guerra, seguida adiante do boom das companhias aéreas, mais baratas e rápidas — e deu-se o declínio dos trens fabulosos e seus imperdíveis roteiros de românticas noite adentro.
Pois o mundo voltou a girar e eles estão de volta a todo o vapor, impulsionados por um conceito que anda em voga neste século XXI: o de viver experiências completas, sem tanto frenesi e muita imersão. É o que algumas rotas recém-ativadas oferecem em profusão, como o chamado Expresso do Papai Noel, que deixa a capital finlandesa Helsinque rumo ao Círculo Polar Ártico em uma aventura de doze horas que permite a observação da nevada paisagem, já que nunca escurece sob o sol da meia-noite. Às vezes, o passageiro é inclusive agraciado com o brilho único do céu da aurora boreal. Outro trecho que agrada aos olhos é o que liga Londres ao cenário montanhoso de lagos cristalinos nas Terras Altas da Escócia. Sem falar no trem que, por catorze horas, atravessa o norte da França e Alemanha, até desembocar na alta cultura de Viena.
Em nenhum outro canto do planeta as viagens ferroviárias, que também existem nos Estados Unidos e na Ásia, causam tanto encanto quanto na Europa — não só pelos cartões-postais que se descortinam, mas pelos mimos que conferem especial glamour ao percurso. “É uma experiência cheia de conforto e vistas surpreendentes, justamente o que as pessoas buscam hoje em dia”, diz Zizo Asnis, autor dos guias O Viajante. E as plataformas transbordam de passageiros. Um levantamento da empresa austríaca Österreichische Bundesbahn (ÖBB) — que deu um consistente empurrão à retomada das viagens sob a luz da Lua, ao comprar dezenas de trens da rede federal alemã — mostra que, de 2019, quando eles estrearam as linhas Nightjet, até 2021, o número de pessoas a bordo saltou de 1,5 milhão para 3,3 milhões, uma multidão que opta entre vinte trajetos por catorze países.
Estimulada pela demanda em ascensão, a frota da companhia austríaca vai praticamente dobrar em 2023. “Estamos registrando lotação máxima neste verão”, conta a VEJA Bernhard Rieder, porta-voz da Nightjet. No Reino Unido, são a Caledonian Sleeper e a Night Riviera que movem o mercado noturno. E, quem diria, o próprio Expresso Oriente, de volta aos trilhos meio sem charme na década de 80, renovou as baterias de dois anos para cá, depois de o conglomerado de luxo LVMH adquirir o grupo Belmond — que, por sua vez, já havia arrematado em leilão parte dos antigos vagões, revivendo a mítica do passado. Ali, nas suítes de décor inspirado em Paris, Veneza, Istambul, há serviço de mordomo 24 horas, champanhe à vontade e roupões e chinelinhos sob medida para cada viajante.
Os últimos tempos foram vitais para alavancar a alternativa ferroviária, uma vez que, na pandemia, muita gente repensou seu estilo de vida e uma parcela acabou por abraçar um ritmo mais vagaroso. “É claro o desejo por viagens mais lentas, que possibilitem a contemplação”, afirma a gerente global de comunicação da Belmond, Anastasia Aroukatos. Em paralelo, o trem vem caindo nas graças da população preocupada com o meio ambiente — um dos ícones da combativa geração verde, Greta Thunberg já declarou que “não vou mais voar”. O trem é, de fato, locomoção mais ecológica: aviões e carros requerem doze vezes mais energia por passageiro a cada quilômetro, emitindo até onze vezes mais gases de efeito estufa. Isso serviu de argumento para o Banco Europeu de Investimento ter fornecido subsídios na casa dos 17 milhões de euros para países da União Europeia avançarem em suas malhas ferroviárias, que deverão decuplicar até 2030.
Não é sempre que o trem sai mais barato que o avião, ainda mais quando se embarca em tão luxuosas cabines. Os preços são tão mais altos quanto a disposição de pagar por paparicos — partem de um assento básico, em média 30 euros, podendo superar os 15 000 euros, aí com direito a toda espécie de mordomia. Na conta, muita gente acrescenta o tempo economizado com check-in, despacho de malas e a praticidade de chegar a estações em geral bem centrais. “Fui de Florença a Paris no Expresso Oriente, paguei caro, mas tive o melhor serviço de bordo possível. Valeu cada centavo”, relata o promotor de eventos Christophe Touchard, dos Estados Unidos. Como se vê, não é preciso um assassinato à la Agatha Christie para tornar a viagem de trem noturno uma experiência memorável.
Publicado em VEJA de 20 de julho de 2022, edição nº 2798