Em janeiro de 1820, dois grupos distintos de exploradores avançaram para o hemisfério sul do globo e depararam com um imenso território intocado. O russo Thaddeus von Bellingshausen descreveu a região como “uma costa de gelo de altura extrema”, enquanto o britânico Edward Bransfield relatou a visão de “montanhas altas, cobertas de neve”. Eles foram os primeiros a avistar terra na Antártica, o continente gelado que nas décadas seguintes foi palco de dramáticas viagens. Acidentes, falhas em embarcações e falta de provisões provocaram lutas pela vida descritas em livros e documentos extraordinários, que desnudam a vocação impetuosa e desbravadora da alma humana. Foi a era heroica da exploração glacial, em nada semelhante aos novos tempos. Hoje em dia, é completamente diferente: luxuosos cruzeiros, passeios de caiaque e a possibilidade de avistar pinguins, leões-marinhos e baleias têm movimentado o turismo na região. Depois de uma pausa nas atividades imposta pela pandemia de Covid-19, o setor está novamente aquecido — espera-se um aumento de 40% de visitantes na gelada Antártica nesta retomada.
Trata-se de uma mudança radical na paisagem da região. Após o período de expedições, a Antártica se tornou um destino fundamental para a pesquisa científica. Mesmo quando turistas se tornaram mais frequentes no continente gelado, no início dos anos 1990, eles eram em sua maioria aventureiros e adeptos de situações extremas. Os grupos eram pequenos e a estrutura dessas viagens, completamente singela. Em 2000, de acordo com relatório da Associação Internacional de Operadores Turísticos da Antártica (Iaato, na sigla em inglês), 12 248 pessoas estiveram no continente. Desde então, o número não parou de crescer até atingir o recorde de 74 381 pessoas na temporada de 2019 e 2020.
Agora, novas marcas deverão ser quebradas graças à mudança no perfil dos turistas. Saem de cena os radicais que aceitam todo tipo de desafio para dar lugar a viajantes que priorizam o conforto, a segurança e boas doses de luxo. “A procura para a temporada de 2022 e 2023 mais que dobrou, porque é uma experiência transformadora”, afirma Jota Marincek, fundador da empresa de viagens Venturas. “O continente não tem somente gelo, mas também montanhas, animais e bases de pesquisa.” Para chegar até lá, as agências usam a cidade argentina de Ushuaia como ponto de partida, de onde zarpam os navios para travessias de até dois dias. Detalhe: os pacotes custam em torno de 10 000 dólares por pessoa.
Tamanho aumento na demanda foi acompanhado por inovações na indústria de embarcações. Os navios que viajam para lá têm tecnologias para oferecer estabilidade em trechos revoltos e resistência ao navegar em ambientes polares. Por dentro, é como estar em um hotel cinco-estrelas, com mimos típicos de estabelecimentos do gênero. “Estamos em um ambiente remoto, mas não deixamos de ter opções de restaurante e serviço com equipe especializada”, diz Jean Saraiva, diretor de vendas para Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai da empresa de cruzeiros Silversea. A bordo do Minerva, da companhia Swan Hellenic, as acomodações podem ter sacadas privativas, camas espaçosas e conforto térmico. Nos espaços coletivos, há piscina aquecida e salões de festas. “As pessoas nem sempre vão contar para os netos que foram para Paris, um destino conhecido, mas vão falar que foram para a Antártica”, diz Ilan Wallach, da agência GSP Atlanta Travel.
A nova era de expedições, no entanto, é vista com preocupação por ambientalistas. A presença humana nunca é inócua e o fluxo de embarcações contamina a neve com o carbono proveniente dos resíduos dos navios. Além disso, há ainda maior emissão dos gases causadores do efeito estufa e o risco de transporte de espécies invasoras. “À medida que o oceano esquenta, o gelo do mar muda e a atividade humana aumenta”, alerta, em seu site, a entidade Coalizão Antártica e do Oceano Antártico, que defende o foco na preservação ambiental. “Esse vibrante ecossistema está sob estresse.” Preocupações ambientais não podem sair do radar de quem deseja que as belezas se mantenham cristalizadas na memória. A Antártica é um patrimônio da humanidade, e como tal deveria ser protegida para sempre, de culto à beleza alva, mas com bastante cuidado.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832