Na Grécia Antiga, o filósofo Diógenes de Sinope (412 a.C.-323 a.C.) era figura conhecida por seu peculiar estilo de vida. Ao notório desleixo com a aparência somava-se ao personagem um intrigante hábito de sair às ruas recolhendo objetos sem valor nem utilidade, que amontoava. Muitos capítulos da história depois, a ciência moderna detectou em uma parcela da humanidade um ímpeto acumulador com traços doentios e a ele, lembrando o grego, deu o nome de síndrome de Diógenes — hoje chamado de transtorno da acumulação (TA), que passou a constar no rol das patologias da OMS e já atinge cerca de 200 milhões de pessoas mundo afora. Essa turma cruzou uma fronteira com a qual muito mais gente flerta, a maioria em campo ainda saudável, aquele em que os excessos são visíveis — armários lotados, coleções de quinquilharias de todas as épocas —, mas não nocivos.
A necessidade humana de estocar remete ao medo intrínseco à espécie de passar por privações. Não à toa, uma porção relevante dos acumulares contumazes, donos de casas em que abrir uma simples gaveta pode promover um demorado mergulho no passado, se concentra em gerações mais velhas, sobretudo na dos baby boomers, nascidos no cenário pós-II Guerra. Eles vieram ao mundo quando os pais ainda traziam bem vivas na memória as lembranças de um tempo em que faltava de tudo e assimilaram a ideia de que, na dúvida, melhor guardar. Esse grupo demográfico contrasta com a ala mais jovem, que caminha justamente em trilha inversa, levando uma vida mais leve, em que bens como carro e casa própria não são mais alvo de aspiração. Às vezes, mentalidades tão distintas colidem. “Tenho dois quartos só para minhas coisas antigas. Meus filhos ficam me pressionando para jogar fora, mas é complicado para mim”, reconhece a professora Janete Haddad, 77 anos.
A dificuldade de se desfazer de velhos cadernos, documentos que caducaram ou até de roupinhas do filho já adulto tem as raízes fincadas em um mecanismo bem descrito pela psicologia. “Há pessoas que não conseguem eternizar lembranças e momentos valiosos no plano abstrato e, por isso, precisam dos objetos físicos, que lhe dão segurança”, explica a psicoterapeuta Lidia Aratangy. Abrir mão desses fragmentos de memória significa, para alguns, que estão jogando fora trechos da própria história. Muitos acumuladores relatam travar batalha diária contra o apego. “O nascimento dos meus dois filhos me obrigou a desentulhar a casa, mas me policio para não voltar a guardar o que não é necessário”, conta a professora gaúcha Josiane Brahm, 38 anos, egressa de um lar pobre que, ao começar a ganhar salário, ingressou com força no mercado consumidor, dando assim o pontapé inicial a um quarto repleto de roupas e objetos, além de uma infinidade de inutilidades — de potes de plástico a embalagens de papelão.
Estudos sobre o tema demarcam a linha em que a mania de armazenar de tudo um pouco passa a preocupar. “Um sinal de alerta é quando o acúmulo compromete a circulação nos cômodos e a funcionalidade do ambiente”, diz a VEJA o psicólogo Gregory Chasson, professor do Instituto de Tecnologia de Illinois. Os que desenvolvem o transtorno guardam uma clara semelhança entre si. “Essas pessoas são tomadas por uma intensa angústia só em cogitar se desfazer de um objeto”, afirma Lucas Lotério, do Laboratório em Psicologia da Saúde da USP. Pesquisas da Associação Americana de Psiquiatria mostram que a acumulação compulsiva pode conter um fator genético, é mais comum em quem recebeu diagnósticos como ansiedade e depressão e, em grande parte das vezes, ocorre no grupo acima dos 60 anos. Os casos aparecem em toda parte — no ano passado, a prefeitura do Rio de Janeiro registrou 330 denúncias de indivíduos vivendo em ambientes tomados por montanhas de tralhas, colocando em risco sua saúde e segurança, assim como a dos vizinhos. “Guardar objetos que têm uma representação afetiva é normal, mas isso não pode virar o centro da vida de ninguém”, alerta a psiquiatra Vera Garcia da Silva.
Em geral restrito ao escaninho dos assuntos silenciosos, o tema ganhou visibilidade com a série Acumuladores Compulsivos (Hoarders), que chegou à 13ª temporada com uma indicação ao Emmy. O reality cutuca a exacerbação de um hábito que vem se desdobrando em novas modalidades, como a dos acumuladores digitais — o tipo que, de tanto armazenar e-mails, fotos e vídeos, extrapola o limite da capacidade de memória de seus celulares e laptops. E assim uma compulsão pode substituir a outra, em um ciclo do qual se deve escapar. Apreciador de guardar caixas cheias de cartas de ex-namoradas, material de faculdade e recortes de jornal, o advogado Cláudio Rocha, 52 anos, digitalizou tudo e livrou-se da papelada. “Acabei criando uma bagunça digital e nunca revisitei nenhuma dessas lembranças”, admite ele, que, sim, quer desapegar. Um passo decisivo rumo a uma vida certamente mais leve.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829