Brasil vê ‘fuga de jalecos’ para EUA e Europa no cenário pós-pandemia
Uma turma de brasileiros da área da saúde corre atrás de boas vagas abertas em velocidade sem precedentes
Os últimos tempos foram especialmente penosos para os profissionais da saúde, que engataram em jornadas extenuantes em hospitais abarrotados pela pandemia em todos os cantos do planeta. Exauridos, muitos anteciparam a aposentadoria ou foram em busca de alternativas de carreira, deixando uma lacuna sem precedentes em hospitais que, para completar, estão sendo acionados como nunca antes. Muita gente, afinal, adiou a visita ao médico enquanto as curvas do vírus estavam a toda.
E dá-lhe multidões atrás de exames e cirurgias, fazendo formar filas como a registrada na Inglaterra, onde quase 5 milhões de pessoas aguardam por atendimento em uma unidade do National Health Service (NHS), o sistema público de lá. É nesse contexto de elevada demanda que países como Estados Unidos, Alemanha, Canadá e o próprio Reino Unido estão abrindo as portas para uma multidão de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e dentistas de variadas nacionalidades. Pois os brasileiros descobriram a rota, que percorrem movidos por salários melhores, um horizonte de crescimento e uma reviravolta na vida.
No ranking de pedidos de vistos americanos de trabalho concedidos em 2021, o Brasil figura entre os cinco primeiros, e só cresce, de acordo com o Serviço de Imigração e Cidadania dos Estados Unidos. Detalhe: o pessoal da área médica aparece em peso. Segundo as principais empresas de consultoria especializadas em desenrolar os labirintos burocráticos da papelada exigida no processo, eles representam em torno de 40% dos que querem mudar de ares. Entusiasmado integrante da leva, o enfermeiro Marlon Miranda, 39 anos, desembarcou em fevereiro no sul da Califórnia e ali tem carga horária menos pesada e um salário (em torno de 104 000 dólares anuais) maior do que o que recebia em um hospital do Exército no Rio Grande do Sul. Ele vivia às voltas com altos e baixos no emprego e penava com a escassez de equipamentos. “Mesmo hoje morando em uma região cara, estou muito bem, e ainda sobra dinheiro para enviar ao Brasil”, conta.
Os Estados Unidos registram 16 000 vagas ociosas para médicos e enfermeiros e precisam de 7 000 especialistas no tão demandado segmento da saúde mental — uma bola de neve, já que 300 000 profissionais da saúde vão se aposentar em uma década, como revela uma projeção da Associação Americana de Hospitais. Uma oportunidade e tanto, talvez única, para estrangeiros na área. Na Alemanha, são aproximadamente 200 000 postos a ser preenchidos, déficit cuja previsão é mais do que dobrar nos próximos anos. O Canadá também sofre, assim como o Reino Unido, onde faltam atualmente 160 000 médicos e enfermeiros. Há um ano, a médica paraense Julie Sanz, 36 anos, exerce a otorrinolaringologia em Bristol, onde tem plano de carreira e já foi surpreendida com um aumento de salário depois de seis meses no batente. “Cada vez mais colegas me procuram atrás de informações sobre o trâmite migratório”, relata ela, bem adaptada à rotina britânica.
Essa não é, porém, uma trilha tão fácil. Para dar certo, há de se ter paciência em meio a um mundaréu de exigências e testes. O candidato precisa, para obter a permissão de trabalho, revalidar o diploma, comprovar experiência e ainda passar em uma prova da língua estrangeira que usará no ofício — esse, aliás, um terreno que envolve um esforço adicional, já que é necessário aprender uma enxurrada de termos técnicos. Ultrapassada essa fase, aí, sim, o interessado pode correr atrás da almejada vaga. No Reino Unido, uma agência ligada ao NHS se encarrega do visto. Nos Estados Unidos, são as empresas que facilitam a obtenção do ambicionado documento. Elas também dão, em geral, uma mãozinha nas despesas iniciais, incluindo a passagem e os primeiros aluguéis. Mas tanto lá quanto em outros países os custos da epopeia burocrática são arcados pelo próprio candidato: eles começam em 6 000 reais, podendo alcançar os 40 000 reais.
Os brasileiros despertam interesse porque costumam demonstrar alta capacidade de adaptação e ter boa formação. “Se estamos conquistando vagas no exterior, é sinal de que nossas universidades estão colocando no mercado mão de obra bastante qualificada”, avalia Marcelo Dantas, cônsul-geral do Brasil em Los Angeles. Há um consenso de que, em muitas especialidades, as condições de trabalho em hospitais brasileiros são para lá de precárias e faltam incentivos para que os profissionais deslanchem. Daí tantos tentarem a sorte no exterior. O impulso para a fisioterapeuta Roberta Barbieri, 33 anos, voar para a Flórida, em junho, veio de uma sensação de que sua carreira em São Paulo andava emperrada, aliada à busca por mais qualidade de vida, sobretudo em relação à segurança. Com ainda pouco tempo de estrada na rotina americana, ela espantou-se com o vigor do mercado. “Recebo propostas de emprego quase todo dia”, conta. Como se vê, os jalecos made in Brazil fazem sucesso.
Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801