Cientistas descobrem segredos de Mary Stuart, rainha dos escoceses
Pesquisadores amadores encontram cartas cifradas e desvendam símbolos ocultos em um achado histórico de grande magnitude
Um cientista da computação israelense, um pianista alemão e um físico japonês tropeçam em um maço de cartas seculares nos arquivos digitais da Biblioteca Nacional da França. Parece início de uma piada mau gosto, mas é, a rigor, o princípio de uma descoberta histórica de grande magnitude. O trio improvável faz parte de um grupo internacional de decifradores de códigos e as missivas que se tornaram objeto de estudo estavam escritas em sinais que permaneceram uma grande interrogação por mais de 400 anos. Usando técnicas digitais, além de análises textual e contextual, eles conseguiram recuperar a chave para entender o conteúdo delas. Ao fim de um ano, descobriram que os textos faziam parte da correspondência de Mary Stuart (1542-1587), a rainha dos escoceses, de história conturbada e fim trágico nas mãos de sua prima inglesa, a rainha Elizabeth I.
A turma formada por George Lasry, de Israel, que liderou o projeto, e seus colegas Norbert Biermann, da Alemanha, e Satoshi Tomokiyo, do Japão, faz parte do Decrypt Project, comunidade internacional de decifradores amadores e estudiosos que trabalham em códigos secretos. Há um ano, a trinca procurava material de trabalho em arquivos da Europa. Por acaso, depararam com algumas coleções on-line da Biblioteca Nacional da França. “Os documentos estavam totalmente cifrados, inclusive a data e a assinatura”, disse a VEJA Lasry. “Não tínhamos como saber a origem.” Além disso, o catálogo da biblioteca é enganoso, porque os documentos apareciam marcados como textos italianos da primeira metade do século XVI.
Para decifrar o código de 200 símbolos, os estudiosos misturaram técnicas analógicas e algoritmos digitais, além de análise linguística. Quando conseguiram ler cerca de 30% ou mais das 57 cartas, com cerca de 150 000 inscrições, identificaram palavras francesas em formas femininas, indicativo de que a correspondência seria de uma mulher. Depois, surgiu a expressão “ma liberté” — “minha liberdade”, em português —, sinal de que provavelmente era alguém em cativeiro. Também apareceu “mon fils” (“meu filho”), pista de que essa pessoa seria pai ou mãe. Porém, só quando traduziram o nome “Walsingham”, de Francis Walsingham, espião a serviço da rainha Elizabeth I, a ficha caiu. “Esse foi o ‘momento eureca’”, descreveu Lasry. “Foi quando tivemos certeza de que era a famosa rainha dos escoceses, Mary Stuart.”
Os livros de história contam que Mary Stuart tornou-se rainha da Escócia em 1542, com apenas 6 dias de idade. Aos 25 anos, foi presa e obrigada a desistir de seu trono em favor do único filho, James. Fugiu para a Inglaterra, onde foi encarcerada novamente pela rainha Elizabeth I, que se sentia ameaçada pela prima. As cartas foram escritas pela rainha dos escoceses entre 1578 e 1584, quando ainda estava sob a custódia do Conde de Shrewsbury. Muitas eram dirigidas a Michel de Castelnau Mauvissière, embaixador francês em Londres. Depois de dezenove anos, ela seria decapitada, em fevereiro de 1587, acusada de envolvimento em uma conspiração católica para assassinar a monarca protestante.
A revelação do conteúdo das cartas é notável. Para John Guy, historiador da Universidade de Cambridge e autor da biografia de Mary Stuart, a façanha representa a descoberta mais relevante sobre a monarca em 100 anos. O texto mostra que ela se envolveu ativamente em assuntos políticos na Escócia, Inglaterra e França e indica ter sido uma analista perspicaz de assuntos internacionais. “O conteúdo ocupará historiadores por muitos anos ainda”, diz Guy. É também um lembrete de que o passado permanece vivo, à espera de ser decifrado.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829