Mulheres com mais de 60 estão longe da aposentadoria sexual, diz pesquisa
Vivendo uma velhice repaginada, com a maturidade soprando a favor, elas nunca se viram tão livres quanto agora
O mundo deu tantas e profundas voltas nestas últimas décadas que o conceito de velhice se transformou por completo. No lugar daquela antiga ideia de que a passagem do tempo conduz inexoravelmente ao declínio nos vários escaninhos da existência — carreira, atividade intelectual, amigos e amores —, entra em cena uma reinvenção dessa fase, que é cada vez mais permeada de descobertas, impulsionadas por uma capacidade de discernimento sobre o que verdadeiramente importa, fruto da maturidade. Uma das mudanças mais notáveis nessa etapa que se convencionou chamar de “terceira idade” (embora quase ninguém se identifique hoje com a classificação) se observa no terreno da vida sexual, sobretudo entre as mulheres, que, segundo vastos estudos, têm conseguido superar freios com os quais conviviam antes e encontrar mais plenitude — uma revolução que rompe um tabu ao qual a sociologia deu até nome: o da “aposentadoria sexual”.
Ao mergulhar em um universo de mulheres que cruzaram a fronteira dos 60 anos, uma nova pesquisa encabeçada pelo Instituto Kinsey, um dos maiores centros voltados para o tema da sexualidade, nos Estados Unidos, concluiu que elas nunca se viram tão livres quanto agora. Muitas relatam que foram se desfazendo de amarras que, na juventude, as faziam silenciar em relação a seus reais desejos. No conjunto, 68% dizem que mantêm uma rotina sexual com assiduidade de pelo menos “algumas vezes por mês” e 60% apreciam o hábito tanto quanto no passado — 13% da amostra até mais. “É um equívoco comum pensar que perderam o interesse por sexo. Descobrimos que elas têm, isso sim, um amplo repertório”, observou a VEJA a psicóloga Cynthia Graham, coordenadora do levantamento, que averiguou que essas mulheres não se incomodam em sair com homens mais jovens nem se privam de usar artefatos, como vibradores.
O resultado encontra eco em várias bandas do planeta — inclusive no Brasil. Há três décadas imersa no mundo da turma de cabeça branca (ou não), a antropóloga Mirian Goldenberg, autora do recém-publicado A Arte de Gozar: Amor, Sexo e Tesão na Maturidade, diz: “As mulheres com mais de 60 nunca foram tão felizes, pois têm menos vergonha de assumir seus medos e vontades”.
Essa ala feminina, em geral, não cresceu sob tetos liberais, mas recebeu uma educação mais tradicional, em que o assunto sexo não vinha à mesa. Isso torna o avanço que agora salta aos olhos ainda mais extraordinário, já que embute vencer barreiras enraizadas desde muito cedo. O fato de terem visto fervilhar ao longo dos anos um caldo de variadas conquistas ajuda — pouco a pouco, foi se dissolvendo o estereótipo da mãe de família devota das engrenagens domésticas e surgiram gerações insufladas pela busca do empoderamento (este um vocábulo em alta). Mesmo assim, para boa parte delas não foi fácil reconhecer seus próprios desejos, especialmente no campo sexual, processo que, às vezes, só ocorre depois de rupturas mais radicais. Ao descobrir traições do marido, a escritora Isabel Dias, 68 anos, decidiu se divorciar e conta que perdeu o chão, achando que estava “velha demais” para uma reconstrução. Na reviravolta, porém, achou liberdade e satisfação. “Aproveito muito mais o sexo do que antigamente. Me conheço melhor, coloco meu prazer em primeiro lugar e me sinto segura para dizer não”, revela Isabel, que falou de sua animada experiência pós-casamento no livro 32: Um Homem para Cada Ano que Passei com Você.
É verdade que a idade traz mudanças no corpo e certas limitações físicas. Após a menopausa, em média aos 50 anos, os hormônios diminuem, juntamente com a libido. Mas os avanços científicos têm contribuído para amenizar esses efeitos. Não muito tempo atrás, as mulheres preferiam se calar a procurar ajuda e se expor, o que felizmente vem mudando. “Uma das principais ideias que enfatizo em meu consultório é que há inúmeras maneiras de ter experiências prazerosas a dois e que a libido precisa ser estimulada, tanto num casamento como em encontros mais casuais”, afirma a sexóloga Giovanna Fornasari, relatando que há um número crescente de idosas (outro termo em desuso) enfrentando fantasmas que as espantavam das clínicas médicas. Aos 82 anos, a figurinista Gilda de Mello não aceita se relacionar com parceiros “afobados”, que querem pular etapas na conquista da intimidade. “Um lado bom do sexo na velhice é fazer as coisas com paciência e se demorar nas preliminares”, avalia a influenciadora, que, embora se aventure por aplicativos de relacionamento, analisa muito bem a amostra. “Fiquei ultrasseletiva”, diz.
Cientistas atentos à sexualidade da população envelhecida têm reforçado a constatação de que indivíduos que permanecem ativos nesse departamento da vida apresentam mais bem-estar. Uma pesquisa da Universidade de Michigan, parte de um projeto maior voltado para os impactos da velhice nos Estados Unidos, detectou que, entre os que ainda tinham vida sexual, a mente estava mais afiada. Para chegar a tal conclusão, foram aplicados testes de memória, atenção e habilidades visuais e espaciais. A hipótese mais forte aí é de que a felicidade conferida pelo laço firmado naquele momento — que pode ser duradouro ou não — cria um propício ambiente no cérebro para novas conexões. “Com a baixa do estresse, se formam neurônios no hipocampo, justamente a área associada à memória”, esclarece o estudo. Também a autoestima tende a se elevar. “Sexualidade vai muito além do ato em si — ela envolve flertar, paquerar, o que dá um sentido de realização”, explica o médico Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade no Brasil.
Apesar dos saltos a celebrar, ainda vigora uma resistência em relação à liberação sexual feminina, especialmente quando o tópico adentra a tal terceira idade. Com 86 anos, Sonia Massara resolveu lançar há seis o perfil Avós da Razão, com quase 400 000 seguidores, em que trata abertamente de suas experiências sexuais. Recebe muitos comentários positivos, mas, não raro, é alvo de preconceito. “Quando me veem falando sobre sexualidade, me acham ridícula. Pensam que nosso lugar é dentro de casa. Até mulheres me dizem isso”, lamenta. Colocar o tema sob os holofotes, com toda a franqueza, é certamente um passo para superar de vez um tabu que em nada tem a ver com a repaginada velhice do século XXI. Em tempos bem mais espinhosos para as mulheres, a francesa existencialista Simone de Beauvoir (1908-1986) já filosofava: “Se você não foi feliz quando jovem, certamente terá tempo agora para o ser”. Nunca é tarde.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889