Durante o recesso de janeiro de 2016 uma mudança simbólica aconteceu no Senado Federal. O espaço passou a ter um banheiro feminino. Inaugurado em 1960, demorou 55 anos para que a estrutura finalmente fosse feita. A ausência de uma instalação tão básica deixava evidente um sentimento que as mulheres brasileiras tiveram que lidar desde a fundação do país: não havia espaço para elas, nem no Senado, nem na política. A arena das decisões públicas e toda sua estrutura, incluindo os banheiros, fora construída por homens e para homens. Enquanto a eles era garantida a participação na esfera pública, às mulheres restava predominantemente o domínio da esfera doméstica. Mesmo quando algumas ousavam ter uma participação mais ativa, frequentemente o faziam sob a tutela masculina, seja a de um marido ou de um mentor. Se a Constituição de 1824, a primeira do país, e outros códigos legais, já não proibiam explicitamente o voto feminino, não era por tolerância, mas sim porque era inconcebível que qualquer mulher, independentemente de seu status, pudesse exercer seus direitos políticos. Algumas, porém, pensavam diferente e se aproveitaram de todas as aberturas possíveis.
É o caso de Isabel de Sousa Mattos, que resolveu tirar proveito de uma brecha na lei para requisitar o direito ao voto. Uma reforma na legislação eleitoral, feita sem mencionar mulheres, autorizava o voto a todas as pessoas com diplomas legalmente reconhecidos. Apesar de cumprir todos os requisitos, e conseguir uma decisão favorável em segunda instância, seu pedido acabou revogado na decisão final. A justificativa, usada para negar solicitações femininas posteriores, era que “o papel social da mulher, de procriar e criar a prole, requeria seu isolamento” e a participação na política poderia levar ao desequilíbrio do lar. A decisão não pacificou os ânimos das pleiteantes ao voto.
Seis anos depois, aproveitando-se novamente de lacunas que não proibiam diretamente a participação política das mulheres, outra Isabel, a baiana Isabel Dillon, ousou tentar candidatar-se a deputada. Novamente, todos os requisitos estabelecidos foram atendidos, exceto um: Isabel não era um homem. Embora esse último ponto não estivesse previsto explicitamente na legislação, foi suficiente para impedir sua candidatura. A recusa de seus pedidos, no entanto, uniu mais mulheres em torno da reivindicação pelo direito à cidadania plena.
Leolinda de Figueiredo Daltro, revoltada por ter seu pedido de registro eleitoral negado, juntou-se a outras feministas cariocas para explorar outra brecha legal. Desta vez, algo improvável aconteceu. Contornando a lei de criação dos partidos políticos, Leolinda conseguiu que o Partido Republicano Feminino (PRF) fosse oficialmente registrado em 18 de agosto de 1911. Embora o PRF fosse oficialmente um partido, não podia lançar candidatos, pois as mulheres ainda não tinham o direito de ser eleitas nem de votar. Privadas das prerrogativas básicas restava fazer barulho – e elas fizeram.
O PRF liderou o lobby pelos direitos femininos e foi o precursor de uma série de organizações que facilitaram conquistas posteriores, incluindo a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), liderada pela conhecida Bertha Lutz. Em 1927, 45 anos após a petição inicial de Isabel de Sousa Mattos, Celina Guimarães Viana e Julia Alves Barbosa tornaram-se oficialmente as primeiras eleitoras brasileiras. No ano seguinte, Luísa Alzira Teixeira Soriano foi eleita prefeita da cidade de Lajes, tornando-se a primeira mulher a ocupar esse cargo em toda a América Latina.
A luta pela plenitude política iniciada ainda no século XIX resultou, em 2022, na maior bancada feminina da história, embora o percentual esteja muito aquém do esperado. São 91 mulheres na Câmara, em um total de 513 deputados, e 15 no Senado, entre 81 representantes. Mesmo entre as raras exceções, as escolhas não são iguais. Entre as senadoras, por exemplo, não há nenhuma mulher negra exercendo o mandato. Além disso, quase 190 anos separam Carlota Pereira de Queirós, primeira deputada eleita, de Erika Hilton e Duda Salabert, primeiras mulheres trans a chegarem à mesma Câmara de Deputados.
Em 1992, em Colônia, no Piauí, Kátia Tapety também protagonizou algo inédito. Tornou-se a primeira transsexual eleita para um cargo político. Quase 30 anos depois, o Brasil elegeu outras 28 vereadoras trans como Kátia. Uma delas era Thabatta Pimenta, eleita em Carnaúba dos Dantas, cidade com pouco mais de 9 mil habitantes. Ela se tornou, simultaneamente, a primeira mulher trans a ocupar um cargo político não apenas na cidade, mas em todo o Rio Grande do Norte. “Quando essas oportunidades chegam até nós, a gente mostra que consegue fazer a diferença”, diz. Acostumada a ser o corpo “estranho” em lugares desacostumados com sua presença, Thabatta sonha ampliar seu território e já lançou sua pré-candidatura à Câmara de Natal, capital do estado. Agora, porém, espera ter companhia. “Nós não queremos ser as primeiras e únicas. Eu quero ver outras ocupando esses mesmos lugares”.
*Essa matéria é a terceira de uma série especial de quatro reportagens que busca resgatar biografias de mulheres pouco conhecidas da história brasileira, relacionando-as a trajetória de mulheres contemporâneas. As histórias foram publicadas ao longo de todo o mês de março.