Quem acompanha as apresentações de músicos de ascendência africana, do jazz, da soul music ou do hip-hop, já notou a permanente referência ao Egito Antigo como estridente fonte de inspiração. As roupas do pianista Sun Ra (1914-1993) remetiam a um faraó futurista. Beyoncé e Rihanna, e nem é preciso apresentá-las, despontam nos palcos coladas à figura da rainha Nefertiti. A iconografia egípcia é associada a poder e resistência.
No início de junho, o Museu Nacional de Antiguidades de Leiden, na Holanda, inaugurou uma exposição que explora o casamento da arte dos músicos negros com a cultura do Egito Antigo. Na engrenagem das redes sociais, não demorou para fazer barulho, ancorado em críticas. A acusação: “falsificação histórica”. Como retaliação, o governo do país baniu arqueólogos holandeses de qualquer escavação futura na necrópole de Saqqara, próxima ao Cairo, um dos mais relevantes sítios arqueológicos da atualidade. Na rápida canetada, encerrou-se uma parceria de mais de cinquenta anos.
Não se trata de fato isolado. Há algum tempo, o Egito vem condenando qualquer representação que busque ampliar a diversidade de visões e interpretações sobre o seu celebrado passado. O caso mais emblemático aconteceu há poucas semanas, quando a Netflix lançou a série Rainha Cleópatra, misto de ficção e documentário que põe a atriz negra Adele James no papel da famosa personagem. Representantes do Ministério das Antiguidades ficaram revoltados, afirmando que a governante era mulher de ascendência helênica, no avesso da versão apresentada pela plataforma de streaming. No início do ano, o comediante americano Kevin Hart foi impedido de realizar um show no Cairo por promover o que seus detratores chamam de afrocentrismo, movimento que busca recuperar a trajetória de impérios africanos e apontar o papel determinante dos negros na construção da civilização ocidental.
A postura adotada pelas autoridades expõe algumas das contradições existentes dentro da egiptologia, ramo da arqueologia e da antropologia que analisa a cultura do Egito. “Por muito tempo, a egiptologia acabou por instalar o Egito fora da África”, diz o egiptólogo Pedro Luiz Von Seehausen, do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Isso significa que os estudos do Egito não levaram em conta a intensa troca cultural existente com outras sociedades da região, nem puseram o país como parte de um contexto mais amplo, geográfico e civilizatório. “Estamos falando de 3 000 anos de história, de uma sociedade multiétnica”, diz Seehausen. Até hoje, quando se fala em Egito, é comum pensar em Cleópatra e na construção das pirâmides. Mas os dois eventos estão separados por mais de 2 500 anos. A monarca, nascida em 69 a.C., está mais próxima da invenção do iPhone do que da pedra fundamental de Gizé (2500 a.C.). Trata-se de fabulação enraizada no colonialismo que guiou boa parte das pesquisas feitas sobre o Antigo Egito por séculos, ao bagunçar a linha do tempo. Representações populares da cultura pop ajudaram a dar força a esse movimento, como é o caso de Cleópatra, filme de 1963 estrelado pelos olhos violetas de Elizabeth Taylor.
Convém ressaltar que os ventos mudam de direção, e que o incômodo de agora era menor até outro dia. Na década de 1960, havia uma relação de proximidade entre as autoridades do Egito e grandes figuras do movimento pan-africanista, que buscava a união entre povos africanos de diferentes países e membros da diáspora. O então presidente Gamal Abdel Nasser recebeu o líder Malcolm X e o boxeador Muhammad Ali, entre outros. Na última década, no entanto, a mudança política fez com que houvesse alguma reafirmação de uma certa “verdadeira identidade egípcia”, seja lá o que isso significa, baseada na herança das antigas dinastias, em movimento de nacionalismo e populismo escancarado.
É postura isolacionista, que fecha os olhos aos contatos e trocas culturais que aconteciam no Mediterrâneo e no norte da África lá atrás, e que ainda hoje se espalham — e parece evidente haver influência negra no repertório egípcio. Entender que houve, sim, influência africana só enriquece o pluralismo de um capítulo crucial da humanidade. É construção coletiva, que pressupõe conhecimento e debate, mas nunca a exclusão. Ninguém é dono da verdade. Impor uma visão única — o Egito sem miscigenação — ou um revisionismo pouco embasado em fatos é repetir os erros de sempre ou, na melhor das hipóteses, andar de lado, como nos hieróglifos.
Publicado em VEJA de 28 de Junho de 2023, edição nº 2847