Desde muito pequena, quando via a Glória Maria na televisão, parava o que estivesse fazendo e ficava olhando, fascinada. Não era só pelas reportagens que ela fazia, com aquela capacidade de mostrar o mundo de forma diferente e viver aventuras incríveis, mas, principalmente, por ser uma jornalista negra. Eu me enxergava nela. Mesmo sem precisar falar da questão racial, Glória passava, para meninas simples e de periferia como eu, uma mensagem de esperança, de que era possível chegar lá e conquistar nosso espaço. Inspirada em seu trabalho, comecei a brincar de produzir reportagens. Eu e meus três irmãos saíamos pelo bairro Parque Avelino, em Ribeirão Preto, onde moramos até hoje, munidos de um microfone feito de garrafa plástica e espuma e uma câmera improvisada com caixa de sapato. Batizamos o programa de Jornal Mirim e nos divertíamos simulando matérias sobre os problemas da comunidade, como a buraqueira no asfalto, o posto de saúde fechado ou o lixo que se acumulava na praça. Eu sempre relatava o que havia de errado, enquanto um de meus irmãos fazia o câmera, o outro, o entrevistado, e o terceiro era o figurante.
Ficar frente a frente com a minha maior ídola nunca passou pela minha cabeça, nem nos meus maiores sonhos. Mas aí aconteceu o improvável. Depois de uma chuvarada em 2017, quando eu tinha 11 anos, chamei meus irmãos para gravarmos uma de nossas reportagens em nossa própria rua, que tinha ficado mais esburacada e cheia de lama do que nunca. Minha mãe filmou a brincadeira e colocou no grupo de WhatsApp da família. Fez tanto sucesso que resolveu publicar em uma rede social. E, em pouco tempo, o vídeo começou a ser repostado por um monte de gente e acabou viralizando. Várias equipes de reportagem nos procuraram e, numa das entrevistas, a repórter me perguntou em quem eu me inspirava. Respondi na hora: “Glória Maria, claro!”. Não sei como, mas isso chegou ao seu conhecimento e ela, depois de combinar com meus pais, veio aqui com uma equipe do Fantástico.
Quando a Glória apareceu, uma surpresa para mim, só tremia e chorava. Como assim? Ela estava ali, na minha frente, de carne e osso. Depois de gravar a matéria comigo e meus irmãos em ação, fez questão de tirar fotos com toda a família e conversar com a gente. Falou sobre a importância e a beleza da profissão e nos incentivou a ir em busca de nossos sonhos, não importasse quais fossem. Após aquela gravação, cinco anos atrás, nunca mais a vi pessoalmente ou falei com ela, mas o encontro já valeu por tudo. Continuamos com as nossas reportagens de brincadeira, mas aquilo despertou a atenção das autoridades, muitos vizinhos passaram a nos procurar para reportar seus problemas e melhorias foram feitas no meu bairro. A repercussão da matéria com a Glória também me rendeu uma bolsa de estudos em um colégio particular.
Passado tanto tempo, veio a triste notícia de que ela havia morrido, em 2 de fevereiro. Soube na escola. Foi um choque, era como se tivesse perdido alguém muito próximo, da família. Me sinto honrada quando me chamam de “Glória Maria mirim”, claro, mas ela era única, insubstituível. Sua trajetória de vida impactou muitas pessoas. No meu caso e no de incontáveis meninas negras, ela deu a inspiração e a coragem para irmos atrás do que a gente realmente quer. Atualmente, além de estudar e fazer aulas extras de redação, tenho um projeto nas redes sociais chamado Histórias Negras Importam. Mostro ali um pouco dos caminhos desbravados por nomes como Ruth de Souza, Antonieta de Barros e Zumbi dos Palmares. Mas o que eu ambiciono mesmo é ser jornalista, como a Glória. Sem saber, ela mudou a minha vida.
Mirella Archangelo em depoimento dado a Sofia Cerqueira
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829