Como quem rememora uma história da carochinha ou uma estripulia, a atriz americana Anne Hathaway (O Diabo Veste Prada) gosta de lembrar de um vestido dos anos 1970 sem zíperes ou botões, com decote em “V” e estampa de tulipas que a mãe, Kate McCauley, guardava no armário. Ainda criança, nos anos 1980, Anne corria para prová-lo assim que ficava sozinha em casa. A anedota foi contada pela atriz para a criadora do modelo, a estilista belga Diane von Fürstenberg, hoje com 77 anos. E como de conto em conto se aumenta um ponto, uma outra revelação de coxia: a menina que viraria estrela teria sido concebida ao abrir sensual daquele tecido pelas mãos do pai, o advogado Gerald Hathaway. E salve uma peça que acaba de completar cinquenta anos de vida, o wrap dress, ou vestido envelope.
A não ser que você tenha permanecido em Marte esse tempo todo, terá estado dentro de um deles — ou então terá visto gente famosa “envelopada”. A onipresente Madonna, sempre que quis parecer recatada e do lar, usou um exemplar. Foi assim no lançamento de seu livro infantil, foi assim numa conferência religiosa em Tel-Aviv, há alguns anos. Beyoncé, vira e mexe, ostenta um legítimo wrap. Michelle Obama, idem. É fenômeno que, para além das revelações visuais, pode ser medido pela estatística. Lá atrás, na gênese da brincadeira, debaixo do slogan “Feel like a woman, wear a dress”, ou “Sinta-se como uma mulher, use um vestido”, foram vendidos mais de 5 milhões de unidades. Diane foi parar na capa de revistas e tratada como a estilista mais relevante desde Coco Chanel, que colocou em cena o discreto terninho.
Nos anos 1980, contudo, tempo de estridência e roupa feia, venhamos e convenhamos, o estilo foi escanteado — era simples demais, elegante demais. Nos anos 1990, foi finalmente resgatado com estardalhaço numa coleção da rede Saks Fifth Avenue, de Nova York, com mais de 20 milhões de dólares de vendas em apenas dois anos (um wrap simplezinho custa, aqui no Brasil, menos de 200 reais). Agora, na celebração do aniversário de meio século, Diane pôs na rua duas novidades: uma com a estampa de cobra píton, que remete a 1975, e outra desenhada por David Kwong, o pai das palavras cruzadas do The New York Times. Há ainda um livro comemorativo, Women Before Fashion, celebração de uma bonita aventura.
A bem da verdade, convém lembrar que a ideia original do envelope não foi de Diane. Antes dela, houve versões engenhosas, ao menos no marketing anunciado. O americano Charles James, ousado a não mais poder, batizou sua criação como “vestido de táxi”, porque queria lançar algo que uma mulher pudesse tirar na parte de trás de um táxi. Não se sabe se funcionou. Mas há uma certeza: Diane tratou de transformar o wrap em ícone de liberdade feminina. “Ela lançou o vestido envelope como marca na hora certa e no lugar certo”, diz a consultora de moda Gloria Kalil.
Era improvável que a pequena grande invenção nascesse das mãos de Diane, que precisava cuidar de dois filhos ao desembarcar nos Estados Unidos, com apenas 27 anos. Mas ela foi em frente, mostrou os desenhos a uma poderosa editora de moda que a incentivou a inaugurar sua própria grife e tratou de divulgá-la. De tecido sempre leve, de estampas coloridas e geométricas, fácil de pôr e tirar (ah, o táxi), que não amassava com facilidade, deu-se a mágica. Virou a vestimenta adequada para uma geração de mulheres que, depois da bem-vinda revolução sexual dos anos 1960, começava a trabalhar fora de casa, orgulhosa. “Diane popularizou um uniforme de poder, a serviço da mulher empreendedora”, diz o estilista Dudu Bertholini. Não demorou para que grandes nomes da alta-costura, como Alexander McQueen, Christian Dior e Michael Kors, seguissem a luminosa trilha. Diane, modesta, acompanhou o fenômeno como se ele tivesse brotado do nada, a simplicidade a serviço de uma necessidade. “Não fui eu que criei o vestido, ele é que me criou. E me ensinou tudo o que sei sobre moda, vida, mulheres e confiança”, disse. Eis a palavra-chave do wrap: confiança.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889