Você deixaria seu filho vagando por uma rua escura enquanto circulam por lá estranhos de todo tipo? Pois bem, guardadas as devidas proporções, é mais ou menos isso o que ocorre quando crianças e adolescentes ficam presos em seus quartos, por horas a fio, diante de uma tela. A metáfora usada por especialistas assusta, mas se baseia em uma série de estudos sobre os perigos relacionados ao precoce e desenfreado uso de celulares, tablets e, sobretudo, das redes sociais. Um recente relatório da associação americana Fairplay: Childhood Beyond Brands adicionou dados ainda mais tenebrosos. Segundo a pesquisa, jovens ao redor do mundo têm acesso desigual a medidas de segurança nas plataformas TikTok, WhatsApp e Instagram. Países europeus protegem bem suas crianças, enquanto o Brasil está entre os mais inseguros.
Os disparates incomodam. A Alemanha estabelece como 16 anos a idade mínima para a criação de uma conta e, mais relevante, exige que os perfis de adolescentes sejam privados, dificultando a interação com adultos e conteúdos suspeitos. No Brasil, jovens de 13 anos já têm acesso livre às plataformas e as barreiras de proteção são frágeis. Tome-se o exemplo do TikTok. Na Europa, os adolescentes escolhem se querem o perfil público ou privado, enquanto no Brasil o sistema automaticamente o define como público. É perigoso. Perfis abertos podem ser acessados por qualquer um — inclusive estranhos que rondam as ruas mal iluminadas, para usar a metáfora dos especialistas. “Medidas de proteção chegam antes a países europeus e aos Estados Unidos em razão de uma maior pressão regulatória e avanço nos debates”, diz João Francisco Coelho, advogado do Instituto Alana, organização brasileira que participou do estudo. “É por isso que buscamos uma mobilização maior no Brasil.”
De fato, os países ricos protegem mais seus jovens. Nos Estados Unidos, estão sendo testadas novas ferramentas de segurança no Instagram, como opções para verificar a idade por meio do documento de identidade e gravação de selfie de vídeo. No Brasil, o Instagram diz que adotará em breve a criação da Central da Família, espaço em que os pais podem supervisionar as contas de seus filhos, e recentemente estreou tecnologias que impedem a interação de jovens com adultos de comportamentos suspeitos, além da segmentação de publicidade em conformidade com cada idade.
Mark Zuckerberg, CEO da Meta, o conglomerado que controla Facebook, Instagram e WhatsApp, é figura central na polêmica. O bilionário americano tinha o desejo de criar o Instagram Kids, uma versão infantil da rede, sob o argumento de que “como todos os pais sabem, as crianças já estão on-line.” O projeto acabou suspenso diante da ira de legisladores democratas. Pesaram contra a Meta as denúncias feitas por Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook, que enviou ao Senado americano um relatório interno que apontava a amplificação de pensamentos suicidas e distúrbios alimentares como a anorexia em seus usuários adolescentes.
O maior perigo apontado por especialistas, porém, está na rede queridinha da garotada, o TikTok. Apesar de curtíssimos, os vídeos de danças ou esquetes de humor, como os da americana Charli D’Amelio, criadora de conteúdo mais popular da rede chinesa, com 144 milhões de seguidores, prendem a atenção de forma avassaladora. O TikTok foi “programado para ser viciante”, na perfeita definição de Matthew Brennan, autor do livro Attention Factory (Fábrica de atenção, em português). O sistema de rolagem infinita, que empilha um vídeo atrás do outro, é operado por algoritmos que rapidamente identificam qual tipo de conteúdo e publicidade é mais indicado a cada usuário. “Devido ao modelo de negócios dessas plataformas, calcado na coleta de dados e máxima economia de atenção, é difícil vislumbrar uma rede social adequada aos direitos das crianças”, diz o advogado João Francisco Coelho.
As crianças são onipresentes nas redes sociais. A americana Everleigh Rose, de 9 anos, é um exemplo gritante: seu canal no YouTube tem quase 4 milhões de inscritos. Vídeos de sua rotina, como quando passou um dia inteiro jogando videogame, são postados por sua mãe, outra famosa influencer. Ainda que não haja violação às normas de uso — adultos estão autorizados a criar e controlar páginas para filhos ou mesmo para bichos de estimação —, há intensas discussões sobre seus efeitos deletérios.
É consenso que os primeiros contatos com as redes devem ser graduais, com acompanhamento e abertura ao diálogo sobre temas como violência e sexualidade. “O primeiro perfil em uma rede deve ser fechado só para familiares, depois para amigos. A liberdade vem à medida que a noção de uso cresce”, diz Vanessa Abdo, doutora em psicologia social pela PUC-SP. Há ainda a questão do cyberbullying: ser caçoado nas redes tem peso bem maior do que no pátio do colégio. “No ambiente virtual, a ofensa é amplificada e eternizada. Os pais devem estar atentos para que seus filhos não sejam vítimas ou autores dos ataques.”
O Brasil abriga uma das referências mundiais no tratamento de dependência de internet, o programa Pro-Amiti, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O psiquiatra Cristiano Nabuco, coordenador do projeto, diz que a tecnologia rouba espaço de experiências reais insubstituíveis e rejeita com veemência a tese dos entusiastas das novas tecnologias de que elas só trazem benefícios. “Esse é um argumento absolutamente falacioso”, afirma. “Já se fala em uma geração perdida, sem autonomia, incapaz de transformar informação em conhecimento e que terá graves problemas na vida adulta.” Exageros à parte, não se trata de desconectar as crianças, mas de buscar um ambiente que permita navegar com segurança pelas extraordinárias oportunidades que a internet traz.
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800