Todo começo de ano é momento de calmaria, de entender os erros do passado e pavimentar os caminhos para os próximos doze meses. Nessa trilha, poucos espaços são mais fundamentais do que o bem-estar dentro de casa. Não por acaso, na busca por aconchego e tranquilidade, depois da severidade da pandemia e do espanto com as guerras do lado de fora das janelas, cresceu um movimento de decoração de interiores batizado carinhosamente de “casa da vovó”.
O que o compõe, atrelado ao nome que já diz tudo e mais um pouco? Cadeira de balanço, plantas em profusão, filtro de barro, tapetes de crochê, mantas de sofá e redes. São peças de evidente memória afetiva, de um tempo sem internet, um tempo mais lento e contemplativo que a sociedade moderna subtraiu. Não se trata de romantismo tolo, de celebrar o passado em oposição ao presente, mas atire a primeira pedra quem não tem saudade daquele cotidiano mais pacato, com jeitão de interior — ao modo, enfim, dos pais de nossos pais, dos avós de nossos pais.
Pode-se medir o interesse pela onda — que se anuncia firme e forte em 2024 — pelo sucesso das hashtags a se espalhar pelo Instagram, palco eletrônico afeito a postar fotos. Uma simples busca por “casa de vó” entrega mais de 500 000 publicações. E pululam ambientes multicoloridos, como os da badalada decoradora e influencer Paula Amorim, na contramão da explosão do minimalismo escandinavo, quase sempre entre o branco e o cinza, de ângulos retos, que dominava os gostos até muito recentemente. A bússola mudou.
Nessa modalidade afetiva de arrumação, a funcionalidade muitas vezes cede espaço à busca por ambientes que costuram lembranças. Vale sobretudo o que a memória informa, a forma e não a função. É como se, mal comparando, voltássemos a ouvir música em vitrolas e não mais pelo Spotify. “A ideia de que elegância está atrelada ao minimalismo colonizou nosso olhar”, diz a arquiteta Marina Fontes, fundadora da Hibisco Arquitetura, de Brasília, escritório afeito a manter móveis antigos com zelo, de modo a oferecer um desenho vintage. Há uma explicação psicológica pela preferência. “Estamos em um momento de repensar valores e condições de vida, priorizando os vínculos afetivos e reavaliando o sentido do morar como o lugar que nos conecta às nossas raízes”, diz Ana Paula Coelho de Carvalho, professora da pós-graduação em design de interiores do Senac de São Paulo. Trata-se, portanto, muito mais do que mera afinidade de estilo.
Em diversas culturas, como reflexo do acolhimento promovido pela residência dos avós, sonhar com a casa da família tem significado seminal. Representa o conforto da nostalgia, em que as coisas funcionavam bem, mas também de segurança ante os problemas do dia a dia. É como colo. Na China, devanear durante a noite com a casa da avó é indício de algo auspicioso, de sorte, prosperidade e equilíbrio na vida. Na Espanha, traduz os laços da memória, a promessa de que as tradições e heranças não serão esquecidas. “Não são os objetos isolados, mas o contexto e sua composição harmônica que ditam a atmosfera pretendida”, afirma Ana Paula, do Senac.
O resultado, do ponto de vista da residência, dá as mãos a uma das mais belas frases do cancioneiro popular americano, da toada The Ballad of Frankie Lee and Judas Priest, de Bob Dylan, do álbum John Wesley Harding: “Que tipo de casa é essa”, ele disse / Onde eu vim perambular? / Não é uma casa, disse Judas Priest / Não é uma casa… É um lar”. Assim são as casas das vovós.
Publicado em VEJA de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874