Como o tempo voa, não demorou para que a primeira classe em travessias de avião ficasse para trás — resultado de cálculo econômico (já não valia a pena), aperfeiçoamento da ergonomia em assentos executivos e, também, de um pouco de cuidado com o exagero em mundo tão desigual. A pandemia acelerou o processo, e adeus ao luxo. Há agora, depois de tanta reclusão, um interessante movimento de retomada das poltronas reclináveis, com champanhe e caviar. A primeira classe vive um novo momento.
As companhias asiáticas lideram a toada. As europeias seguem a trilha. A Qatar, com novo CEO, acaba de anunciar o desenvolvimento de instalações refinadas. A Cathay Pacific, de Hong Kong, oferece uma cama com pijama e banho. A Etihad, dos Emirados Árabes, bate bumbo para um espaço a bordo chamado The Residence, suíte com três quartos no superjumbo A380 da Airbus que faz o circuito Abu Dhabi, Nova York, Londres e Paris. O preço: 24 000 dólares, o equivalente a pouco mais de 128 000 reais por pessoa. Há sala de estar, enxoval assinado pela grife Giorgio Armani e um arsenal de requintes e mimos oferecidos aqui embaixo, na Terra.
A experiência, gostam de ressaltar as empresas, começa antes da decolagem. Quem compra as passagens mais caras tem serviço de chofer e sai de casa em limusine. No aeroporto, tem acesso a salas vip, não aquelas que os cartões de crédito oferecem para seus clientes, mas espaços realmente únicos. “Buscamos aprimorar o terminal separado para a primeira classe, criado há dez anos”, diz Annette Taeuber, diretora-geral da Lufthansa e Swiss para o Brasil, que anunciou aporte de 2 bilhões de dólares na modernização da exclusividade. No terminal especial, o passageiro é recepcionado por um atendente especial. A Air France, atenta ao imenso fluxo em julho e agosto, com a Olimpíada de Paris, celebra a inauguração de um lounge no aeroporto Charles de Gaulle. Ali, a empresa montou suítes com capacidade para quatro pessoas, com cama de casal, banheiro, varanda e escritório — além de possibilidade de relaxar em um spa de uma fabricante de cosméticos.
Há que considerar, sim, que o retorno em grande estilo, embora o luxo nunca tivesse desaparecido totalmente, anda na contramão de um padrão de mercado que busca a democratização do transporte aéreo. Ela existe, de fato, em deslocamentos mais curtos. Para cruzar oceanos, contudo, tudo indica haver terreno para uma gama de ofertas, das mais econômicas às mais dispendiosas. E, depois de tanta austeridade, brotou um tantinho de vontade de voltar no tempo, aos anos 1960 e 1970, quando voar era um evento inigualável, sonhado, comemorado e, para quem tivesse bala na agulha, representava sinônimo de pompa.
O resgate impôs adaptação industrial. No passado, especialmente nos modelos 747 da Boeing de dois andares, os double deck, havia área de sobra para caprichados cantos. Hoje, com os canudos de alumínio mais delgados, foi preciso mudar. “O design das aeronaves forçou a inovação na distribuição de assentos”, diz Flávio Pires, CEO da Associação Brasileira de Aviação Geral. Pode-se celebrar, então, a segunda revolução do requinte como uma vitória da engenhosidade do design. Para poucos, sem dúvida. Dá para rir com a boutade do produtor dos anos de ouro de Hollywood, David O. Selznick (1902-1965): “Só há duas classes: a primeira e a falta de classe”. O problema é que nenhuma delas é imune às turbulências.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897