No último dia 9, desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) anularam as condenações dos acusados do assassinato do menino Evandro Ramos Caetano, em 1992, na cidade de Guaratuba. A reviravolta veio depois de denúncias de tortura, e do surgimento de áudios gravados na época, que comprovavam que as confissões foram obtidas de forma ilegal. O conteúdo foi revelado no podcast Projetos Humanos, produzido pelo professor universitário e designer Ivan Mizanzuk, para quem o assunto virou uma obsessão.
Há oito anos ele se dedica ao caso e a outros crimes relacionados. Agora, o podcaster acaba de lançar uma nova temporada dedicada ao caso Leandro Bossi, assassinado um pouco antes de Evandro, cujo corpo foi identificado em 2022. “Mesmo hoje, depois de tantas elucidações importantíssimas e cruciais, acredito que ainda há perguntas a serem respondidas”, defende. Em entrevista a VEJA, Mizanzuk falou sobre como se sentiu com as anulações do Caso Evandro, os motivos por trás da produção de uma nova temporada dedicada a Leandro Bossi e seu papel nas produções de True Crime brasileiras.
Você já mencionou que o caso Evandro se tornou uma espécie de obsessão. Eu queria que nos dissesse como esse caso ocupou um espaço tão importante da sua vida e quando ele se tornou uma obsessão para você?
O evento mais marcante para mim foi em 2002, quando tinha por volta de 18 anos e estava em Guaratuba – cidade onde minha avó morava e que eu sempre frequentei – com alguns amigos. A gente passou na frente de uma casa e uma amiga disse que ali era a casa das bruxas que matavam as crianças e enterravam no quintal. Isso ficou na minha cabeça. Os anos foram se passando e eu fui me interessando por pesquisar sobre religiões e fiz mestrado em ciências da religião.
Em algum momento eu comecei a pesquisar mais sobre bruxaria, sobre ocultismo e sempre me vinha essa história das Bruxas de Guaratuba que matavam crianças. Em 2015, muito influenciado por podcasts americanos que tratavam de casos criminais nos Estados Unidos, comecei a fazer podcasts narrativos e investigativos e, claro, me veio a ideia de abordar esse caso, só que com o nome de ‘Caso Evandro’. Primeiro para dar uma atenção à vítima. Segundo porque o termo ‘Bruxa de Guaratuba’ levava para uma interpretação de culpabilidade daquelas pessoas, quando havia uma dúvida – que hoje a gente conseguiu esclarecer.
Quando eu comecei a investigar, via que havia muitas dúvidas sobre o caso e esclarecê-las se tornou sim uma espécie de obsessão. E mesmo hoje, depois de tantas elucidações importantíssimas e cruciais, acredito que ainda há perguntas a serem respondidas.
Você não é um jornalista investigativo, tampouco um investigador, no entanto essas foram algumas das personas que você assumiu ao longo desses projetos. Como foi assumir esses papéis para você, quais métodos de trabalho você desenvolveu ?
De certa forma, eu nunca saí desses casos, estou neles desde 2015. São oito anos. O que eu comecei a fazer, não sendo jornalista, não sendo investigador, foi usar a metodologia científica. E isso se deve muito à minha formação acadêmica, como professor universitário. Sobre os métodos de trabalho, por incrível que pareça, eu uso muito do design, que é a minha formação. Como lido com muitos dados, e preciso organizá-los bem, utilizo muitos conceitos do design de formação. Além disso, minha experiência em sala de aula sempre fez eu me preocupar muito com as pessoas e fazer com que elas entendessem o que eu estava falando da maneira mais didática possível.
Como seu interesse em se aprofundar nesse caso foi recebido pelos envolvidos?
Tem gente que me recebeu muito bem, tem gente que não. Tem gente que claramente fica com medo de falar. São casos sempre muito dolorosos, que envolvem muita especulação, muito boato. Você chega querendo entrevistar ou saber alguma informação que pode te ajudar e a pessoa fica desconfiada, pensando “Por que esse cara está aqui?”. Isso faz parte do trabalho. Tem pessoas que abriram completamente as portas, como a família Bossi. Eles sempre se viram deixados de lado pelo sistema e viram no meu trabalho, na minha abordagem, uma possibilidade de finalmente serem ouvidos. Por causa disso, eu sou muito grato. Tem de tudo: tem gente que fica com medo, tem gente que fica desconfiada, tem gente que fica com raiva e tem gente que fala “finalmente alguém quer me ouvir”.
O caso Evandro voltou à tona devido a anulação das condenações dos acusados, um ponto especialmente importante para você. Como você se sente diante desse novo episódio do caso? O que essas anulações significam para você?
Eu me sinto muito honrado de ser dada essa importância ao meu trabalho. Ao mesmo tempo, eu acho que é importante deixar claro que muita gente veio antes de mim. Desde advogados daquela época que lutaram muito para provar a inocência daquelas pessoas acusadas injustamente até jornalistas que não aceitaram a versão oficial. Também autoridades que sempre acharam esquisita aquela história e acreditavam que valeria a pena revisar o que aconteceu. O meu trabalho é só a continuação desses esforços que não foram bem-sucedidos no passado. Eu fico muito feliz que tanta gente acreditou nisso. Acho que as anulações significam uma grande vitória para todas as pessoas que sempre tiveram interesse em contar e esclarecer o que realmente aconteceu nesse caso, que foi uma série de equívocos que resultaram nessas falhas e falta de respostas – as quais buscamos até hoje.
Na nova temporada do seu podcast, com ênfase em Leandro Bossi, você busca trazer esse caso, que ficou ofuscado pelo Evandro, para a cena principal e se coloca, mais uma vez, no papel de investigar a veracidade das narrativas em torno dos fatos. Qual foi o gatilho que o fez retornar a esse caso?
Eu sempre pensei que se fosse possível trazer uma resolução para o caso dos meninos de Guaratuba seria através do Leandro. Isso pelo fato de que o Leandro era considerado uma criança desaparecida e que estava com uma investigação em aberto. Esse era o meu ponto principal. Só que aconteceu algo muito importante em junho de 2022: o resultado do novo DNA que foi feito nos fragmentos da ossada encontrada em março de 1993 em Guaratuba. Em um exame de DNA da época, o resultado deu como se fosse de uma menina e que hoje a gente sabe que era do Leandro mesmo. Essa era uma informação nova: nós sabemos que o Leandro está morto e que o seu corpo foi deixado no mesmo matagal que o Evandro foi encontrado, em 1992. Duas crianças muito parecidas, num período de dois meses, desaparecem numa cidade pequena e os seus corpos são deixados no mesmo matagal. Isso é uma informação importante. Havia muita teoria da conspiração em torno da ossada, que alguém teria colocado lá para atrapalhar os casos. Com essa informação nova que nós ganhamos, a gente podia dizer: ‘Temos uma nova peça desse mistério’.
Quando saiu o resultado do DNA, eu entrei em contato com a família Bossi e falei para eles: “Eu conheço muito bem o Caso Evandro, conheço muito bem o Caso de Altamira, conheço boa parte do Caso Leandro Bossi e essa história não vai ser mais investigada porque o crime já prescreveu. Eu gostaria de saber se vocês têm interesse e autorizam que eu faça uma nova investigação, dessa vez focada no Leandro Bossi”. E a família aceitou. Mas foi isso: o gatilho principal foi a identificação da ossada como sendo do Leandro porque era uma pista nova importante.
Qual o seu objetivo com a investigação desses casos? Há uma pretensão de encontrar o assassino dos garotos, você acha que isso é possível e que essa pessoa ainda está viva?
Nesta semana revelamos o caso da Sandra, que acreditamos ter sido morta três anos antes do Leandro e do Evandro, em outra cidade. Acreditamos que esses três casos estão conectados e que foi a mesma pessoa. Não é que eu acredito que seja possível encontrar o assassino, mas creio que temos que tentar. São casos muito complexos e eu os tenho ainda muitos frescos na memória, com todos os seus detalhes. Se a pessoa está viva ou se é possível de ser encontrada, não sei. Acho que temos alguns indícios e vamos segui-los tomando todos os cuidados possíveis.
O que podemos esperar dessa nova temporada focada no Leandro Bossi? Alguma revelação similar à que trouxe no caso Evandro?
A revelação do Caso Evandro foi muito única. Encontrar fitas que comprovam torturas e que fazem todo esse caso voltar para a estaca zero acontece uma vez na vida. Em Altamira nós tivemos revelações importantes também sobre os bastidores daquele processo e o que aconteceu por trás de todo aquele caso, mas não ganham a mesma repercussão porque não é algo tão bombástico.
Eu acredito que no Caso Leandro Bossi nós fizemos algo que deveria ter sido feito lá atrás, no inquérito, que era contar a história da família Bossi. Acho que, nesse sentido, a parte mais importante já aconteceu: dar voz às famílias. Eu acredito que a gente traz coisas muito importantes também. Não são similares ao Caso Evandro porque não estamos mais falando de casos de tortura, mas são revelações muito impactantes. Por exemplo, o caso da Sandra, que foi uma criança que morreu e o corpo foi encontrado de forma muito parecida com os meninos de Guaratuba. Quando começamos a pegar essas revelações e juntar algumas peças, eu acho que temos informações muito importantes, mas que são diferentes.
Você se tornou um dos principais nomes no segmento de True Crime no Brasil atualmente, um campo que é surpreendentemente popular entre os brasileiros. Queria que você falasse um pouco desse papel que você desempenha e da sua popularidade. O que você considera o diferencial do seu trabalho em um meio com tantas produções?
Eu não considero o que eu faço como sendo true crime. True crime, em um sentido mais amplo na indústria de podcasts, está muito relacionado a um programa semanal que vai falar cada semana sobre um crime diferente. Produções que têm uma temporada inteira focada na investigação de um crime só são raras. Nos Estados Unidos isso é mais comum, mas aí é um outro mercado. Mesmo comparando com essas outras produções que fazem a investigação mais profunda de apenas um caso, eu acho que o meu grande diferencial, por conta dessa minha formação em humanidades com pesquisa científica, é fazer uma antropologia do fato criminal. Eu quero entender quais são as condições de vida daquelas pessoas, quais eram seus sonhos. Quando alguém fala algo no inquérito, eu tento entender as intenções que estão por trás daquilo que ela está falando. Fazemos uma análise de conteúdo e de discurso. Tentamos ver todos esses jogos políticos e simbólicos que acontecem em torno dos casos. Usando as palavras do Alberto Mussa, eu acho que eu tento fazer muito mais um estudo da história da sociedade através dos seus crimes. Acredito que esse é o meu principal diferencial.
Como falar desses casos e trazer à tona suas nuances sem revitimizar as vítimas e seus familiares?
Essa é a grande preocupação. Como é que falamos dos casos de uma maneira que não seja sensacionalista? Como é que não fazemos as pessoas passarem por toda a dor de novo? Existe uma questão no meu trabalho que como eu pego casos que são muito antigos, geralmente já passou a fase de grande espetacularização. Os casos já aconteceram e as pessoas, muitas vezes, já conseguem falar melhor sobre esses fatos traumáticos. Eu sempre tento dar esse espaço para que a pessoa fale da sua vida e conte como aquele fato a afetou. É muito mais um exercício de fazer a pessoa ter sua voz ouvida. Eu quero mostrar sempre que existe uma pessoa, ela tinha a vida dessa forma e isso acabou por causa dos acontecimentos. É por causa desse trauma, dessa dor, que ela precisa ser ouvida e que precisamos dar esse espaço. Feito isso, vamos avançar porque podemos levantar informações, saber o que aconteceu.
Daí vem o meu papel de ser bastante participativo. Eu coloco na minha voz: “Eu fui falar com tal pessoa, eu li o documento”. Essa é uma ferramenta narrativa bem importante de poder fazer o ouvinte ter alguma identificação. Através da minha experiência, ele entra em contato com o personagem que está contando algo que é muito doloroso. Eu sinto a dor e através da minha empatia tento fazer isso chegar no ouvinte.