Mostras em SP retratam como estilistas japoneses mudaram a alta-costura
Exposições simultâneas na Japan House celebram com pompa as conquistas do movimento, que não para de ecoar e, ainda hoje, surpreende com reviravoltas
Quando Kenzo Takada (1939-2020) resolveu contrariar seus pais e largar o curso de literatura para estudar moda na Bunka Fashion College, em Tóquio, deu-se o início de uma revolução. Em meados dos anos 1960, ele se mudou para Paris, o epicentro da moda mundial. Estudou, se esmerou no métier, aprendeu de tudo e mais um pouco. E então, na década de 1970, inaugurou a própria grife, a Jungle Jap (mais tarde, Kenzo). O resto é história: ele foi o primeiro criador japonês a desfilar nas passarelas parisienses com estilo colorido, excêntrico e anticonformista, ao misturar o tradicional a cortes evidentemente ocidentais.
Kenzo abriria as portas para os plissados, coloridos e high-tech, de Issey Miyake (1938-2022), a costura avant-garde de Yohji Yamamoto e a desconstrução de Rei Kawakubo, da Comme des Garçons. A partir dos anos 1980, o time oriental desafiaria os cânones com cortes geométricos, a elegância imposta pelos traços simétricos — a arte, enfim, de revirar o clássico e fazê-lo moderno e interessante. Não por acaso, duas exposições simultâneas na Japan House, em São Paulo, celebram com pompa as conquistas do movimento nipônico, que não para de ecoar e, ainda hoje, surpreende com reviravoltas.
Efeito Japão: Moda em 15 Atos reúne trajes de renomados estilistas, confeccionados em cinquenta anos de aventura. Sutorito Fashion: Moda das Ruas aborda o street style das metrópoles por meio de registros fotográficos feitos nas ruas do país em diferentes épocas. São mostras distintas, mas complementares, com ideias que nascem nos anos 1950 e chegam aos dias atuais. “Do conjunto, é possível conhecer o trabalho de designers reconhecidos e celebrados e perceber como o cidadão comum pode influenciar o vestuário de uma geração”, afirma Natasha Barzaghi Geenen, diretora cultural da instituição paulistana.
Embora a história da moda japonesa remonte ao século IV, registrada em desenhos e revisitada em filmes de época como os de Akira Kurosawa, foi somente no período posterior à Segunda Guerra que as vestimentas passaram por transformação, de mãos dadas com a abertura para o mundo. Houve avanços no universo da tecnologia e dos carros, por meio de gigantes como Sony e Honda, Nintendo e Toyota, que mudaram de continente para incomodar os executivos americanos — e agradar o consumidor. Mas deu-se também a travessia dos pés à cabeça, de calçados a chapéus. Made in Japan viraria sinônimo de qualidade, sem dúvida, mas também de discreta irreverência. E algo mais: a ideia de que o refinamento poderia despontar em araras de grandes lojas.
O retrato mais bem acabado da invasão japonesa, por assim dizer, foi o quimono, peça de gueixas e de lutadores de artes marciais, que abandonou o classicismo para ganhar vida. “A desconstrução do quimono, sem no entanto abandonar as linhas retas, é o símbolo mais evidente da adaptação a novos ambientes”, afirma o professor e estilista Jum Nakao. Dito de outro modo: o corte e costura japonês é manifesto e tradução dos humores da sociedade, a de lá, mas a de cá também, no casamento de silhuetas elegantes, em caimento perfeito, com o cuidado ambiental, em permanente respeito ao que é extraído da natureza. “A inovação no corpo é válvula de escape social”, diz a especialista em cultura japonesa Cristiane Sato. “A sensibilidade japonesa é capaz de contemplar a mudança dos tempos como um espelho do cotidiano”, ecoa Souta Yamaguchi, coordenador das exposições da Japan House.
Cabe perguntar, agora, passado meio século do rastilho inicial de Kenzo, de onde virá o próximo grande estilista do Japão. Será compulsório o indefectível aval de Paris, a engrenagem que ergue e destrói coisas belas. Mas, pode ter certeza: quem quer que seja, terá bebido do ambiente urbano, do asfalto. Kenzo cantou a bola, em perfeito resumo: “A moda não é para poucos — é para todas as pessoas”.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899