“Nossa política de combate ao racismo é um band-aid em fraturas expostas”
Organizador de livro que discute a resistência negra à exclusão social, o professor e ativista Helio Santos propõe um projeto capaz de oferecer equidade
Nas discussões sobre o bicentenário da independência, o racismo teve espaço limitado. O livro “A resistência negra ao projeto de exclusão racial”, que chega agora às livrarias, reúne 34 autores com objetivo de propor uma reflexão sobre a exclusão social da população negra nos últimos dois séculos. São artigos escritos por Ana Maria Gonçalves, Djamila Ribeiro, Joel Zito Araujo e Sueli Carneiro, entre outros, organizados pelo professor e doutor em administração Helio Santos.
Conhecido ativista da causa negra desde a década de 1970, Santos assina o último artigo do livro, um manifesto propositivo sobre a criação de uma política capaz de enfrentar o que chama de racismo sistêmico-inercial. Em entrevista a VEJA, ele discute suas ideias e a dívida histórica que nunca foi reparada após a abolição da escravidão.
Professor, conte como surgiu a ideia de reunir os 34 autores no livro.
No bicentenário da independência do Brasil, ante o nosso ethos de baixa intensidade no campo da cidadania, entendemos que essa celebração dos 200 anos não deveria prescindir de um consistente posicionamento de ajuste de conduta para o futuro, no sentido de impulsionar o país para um novo patamar civilizatório. Durante um bom tempo, o Brasil esteve entre os 10 países mais ricos do mundo, junto com Reino Unido, França, Japão, Estados Unidos e Alemanha. Simultaneamente, estávamos entre os 10 mais desiguais. Era uma simetria bizarra. Entre os 10 mais ricos, era o único de maioria negra. E, assim, a coisa fica mais bem explicada: a questão étnico-racial é central para pensar num desenvolvimento.
No livro, fica claro que a exclusão social foi uma política de estado.
A exclusão social fez parte da estratégia de desenvolvimento pensada pelo Brasil no início do século. Dois decretos explicam isso. A Lei Áurea, que terminou com a escravidão, tem dois artigos. O primeiro estabelece o fim da escravidão, e o segundo revoga as disposições em contrário. Costumo dizer que esse segundo artigo não revogou nada. As disposições em contrário estão aí até hoje. Basta ver o exemplo de Sergio Moro, que quando foi ministro tentou aprovar um pacote em que o policial seria livre para atirar em suspeitos, e sabemos que o negro é sempre suspeito. O primeiro decreto que explica essa estratégia de exclusão é o 528. Promulgado sete meses após a proclamação da República pelo Governo Provisório, ele tem 43 artigos muito bem definidos, que estabeleciam diretrizes, incluindo cifras, para os imigrantes europeus que aqui chegariam, e ao mesmo tempo ignorava olimpicamente a população negra. Em 1911, o Decreto 9081, assinado por Hermes da Fonseca, com 26 capítulos e 277 artigos concisos e bem articulados, regulamentou a estratégia de instalação das diversas etnias europeias que aqui chegavam.
Para a população negra, pelo contrário, houve um aumento da repressão.
Quando se fala no conceito de ações afirmativas, tratam-se de ações utilizadas para compensar as perdas históricas que um determinado grupo sofreu. Aqui, aconteceu o contrário. A primeira política após a abolição foi a ampliação das brigadas militares, as atuais polícias. Elas estavam ali para reprimir. Depois, o Marechal Deodoro cria o Código Penal, que falava dos “vadios” e “capoeiras”. Os vadios eram cidadãos sem emprego, sem casa, sem nada. Enquanto prometiam certeza de acolhimento e ocupação para as populações europeias, para o negro se eximiam de qualquer responsabilidade. Esse Código Penal de 1890 estipulava pena para quem não tinha emprego. A capoeiragem era considerada um crime. Hoje, é uma prática esportiva sofisticada presente em mais de 150 países que mostram como o atleta prepara o corpo com música, com sensualidade. Para você ver, até no lazer da população negra o Estado brasileiro foi algoz.
Essa desigualdade na vontade política de acolher os negros ?
É importante dizer o seguinte: uma vez que o país escolheu esse caminho, sou totalmente a favor da diversidade. Muitas vezes, da maneira como a história é contada, parece que só recebemos italianos e espanhois aqui. Não é verdade. Recebemos russos, poloneses, alemães, japoneses. Todos trabalhadores rurais. Tenho grande e profundo respeito por esses imigrantes. Fotografias da época mostram homens descalços, desdentados, a maioria assinava com o polegar. Uma vez que esse caminho foi escolhido, toda a ajuda oferecida a eles era necessária. A suma injustiça é que esse apoio não tenha sido estendida aos indígenas e negros. É a partir daí que se estabelece o apartheid brasileiro.
O senhor não usa a expressão “racismo estrutural”. Por quê?
Este racismos nosso todo mundo chama de estrutural. Eu dei outro nome: sistêmico-inercial. Sistêmico não apenas porque é recorrente e perpassa toda a sociedade, desencadeando efeitos que retroalimentam as causas e gera complexidade. Essa visão que tem o negro como inferior funciona como uma grande artéria que abastece as outras veias da sociedade. Influencia até os meios de comunicação, que retratam a violência onde o negro é maioria, impactando os próprios negros com crise de identidade. Além de sistêmico, é inercial. De acordo com a primeira lei de Newton, se algo trafega numa direção, ante a inação para contê-lo, ele segue de maneira resoluta. Está no piloto automático, para usar uma linguagem menos acadêmica.
Alguma política pública tem ajudado a reduzir esse racismo sistêmico-inercial?
Nenhuma política pública no nosso país reduziu as desigualdades como as cotas raciais. E nenhuma foi tão contestada quanto as cotas. Isso evidencia uma dificuldade nossa, quase patológica, de enfrentar a questão. Precisamos de políticas públicas sistêmicas e encadeadas que aconteçam em todas as áreas em que a vida acontece. As políticas de combate ao racismo que existem hoje são como band-aids usados para tratar fraturas expostas.
Como combater esse racismo sistêmico-inercial?
Eu proponho um Novo Acordo, que remeta ao New Deal americano dos anos 1930. Precisamos customizar essa ideia para a população racial. Não quero falar de um acordo que olha apenas para o retrovisor histórico. A roda do racismo girou. Trata-se de um problema nacional. A percepção da sociedade mudou. Eu proponho ações afirmativas sistêmicas para a equidade racial. Não é igualdade, é equidade. Não há nada mais desigual do que tratar a todos igualmente. Hermes da Fonseca entendeu isso ao dar apoio aos despossuídos. A parte irônica dessa história é que hoje há tataranetos desses imigrantes que se colocam contra as cotas raciais. Por isso, proponho 10 ações afirmativas, estabelecidas após a leitura de todos os artigos dos outros colaboradores do livro.
Quais são essas ações?
A criação de um plano para a juventude que possa acabar com a mortandade consentida dos jovens negros. Um programa de apoio ao ensino médio público, porque é onde ocorre a maior evasão escolar da população jovem. O fortalecimento das universidades públicas como forma de impedir o sucateamento dessas instituições, uma maneira de prejudicar o impacto das cotas. A universalização do ensino infantil. A “invasão” das mais de 6500 favelas do país não com polícia, mas com políticas sanitárias, arquitetônicas e de geração de renda. A criação de um programa de renda adequado que ofereça ajuda não só econômica, mas escolar e psicológica para fomentar a autonomia. Políticas afirmativas financeiras inspiradas na experiência dos imigrantes, mas que façam sentido no século 21 para a população negra. Apoio à economia informal, trazendo os quase 40 milhões de trabalhadores informais para a previdência social, e estimulando uma profissionalização de seus negócios. A criação de uma cota orçamentária para a Fundação Palmares para o apoio das riquíssimas manifestações culturais negras. E a extensão da política de cotas não até 2032, como está sendo discutido agora, mas até 2042, porque 30 anos é pouco tempo para reduzir as desigualdades.
Como colocar essas ações de pé?
Acredito na criação de um Ministério da Igualdade Racial de cunho ético e moral que tenha como missão o desenvolvimento com sustentabilidade moral. Discutimos muito esse tripé de sustentabilidade econômica, ambiental e social. Eu acrescentaria o vetor moral. Veja, aqui no Brasil se produzem os melhores jatos de porte médio do mundo. E isso só foi possível graças a mais de meio século de investimentos no ITA (Instituto de Tecnologia Aeronáutica). Não se improvisa a produção de aviões. Este mesmo país não consegue hoje treinar as mães pobres a ferver a água para impedir que as crianças morram de diarreia. O foco do ministério seria na população negra, mas os benefícios seriam coletivos. E nós fazemos parte da solução. Não temos, no momento, ninguém que discuta isso. Sabemos qual caminho não tomar. Eu não partidarizo a questão, mas hoje votar contra Bolsonaro é um ato de legítima defesa da população negra. Ele não tem projeto para nada disso que falei, e as violências no campo racial ampliaram-se no governo dele.
É possível pensar em um futuro em que o racismo tenha sido eliminado da nossa sociedade?
Veja, a Constituição de 1988 prometeu o estado de bem-estar social. Não concordo que prometeram algo que não é plausível. O Brasil tem a quinta maior extensão territorial do planeta, a maior reserva hidrológica do mundo. Tem uma população majoritariamente jovem, ávida por oportunidade. Isso nos torna potentes. Mas para que isso seja possível, voltamos à questão racial. No futebol, por exemplo, vão atrás de onde tiver um talento. Não medem esforços, e é por isso que fomos cinco vezes campeões do mundo. Ao mesmo tempo, não temos nenhum prêmio Nobel. Nossos vizinhos têm vários. A Argentina tem cinco. O Chile, a Guatemala e a Colômbia, dois cada. Peru e Venezuela também têm um. E depois falam de mérito em nosso país. Na música e no futebol, as duas únicas áreas em que o negro não foi impedido de estar, o mundo inteiro conhece nosso talento.