Nova pesquisa revela a revolução silenciosa provocada pelas mulheres na sociedade brasileira
Mesmo em meio à onda conservadora que varreu o país nos últimos anos, elas se mexem para chacoalhar velhos pilares
Em meio às grandes mudanças demográficas do país, uma revolução silenciosa e extremamente bem-vinda toma corpo. Esse movimento é liderado pelas mulheres, sobretudo as egressas das jovens gerações. Enquanto boa parte da parcela masculina da população se encontra em crise existencial, tentando eliminar vícios e comportamentos do passado para se enquadrar neste admirável mundo novo, elas estão voando alto: demonstram disposição para encarar os ásperos temas postos à mesa da vida moderna, repaginando seu próprio papel no trabalho e em casa e encabeçando novos comportamentos que já dão outra feição à sociedade e alimentam discussões que prometem embalar as rodas políticas logo ali, nas eleições de 2026. Embora tenha herdado o bastão de suas antecessoras, que em décadas passadas agitaram bandeiras do feminismo tão decisivas para os avanços vistos hoje, essa turma segue em frente sem gritos de guerra e longe dos holofotes.
O fermento da insatisfação que as faz marchar por mudanças é um leque bem pé no chão de anseios: imersas em um cotidiano estressante de jornadas duplas, triplas e ainda em desvantagem em relação à ala masculina, estão em busca de um horizonte melhor para elas e os filhos, a quem tanto influenciam, e de maior igualdade, já que o trabalho encampado dos anos 1960 em diante pelas feministas ainda não se encerrou. Segundo uma pesquisa da Quaest, encomendada pela Rede Globo, que ouviu 10 000 pessoas em 340 municípios e resultou no recém-lançado O Brasil no Espelho (Globo Livros), as mulheres, mesmo em meio à onda conservadora que varreu o país nos últimos anos, se mexem para chacoalhar velhos pilares. “É justamente porque ainda sofrem discriminação e estão atrás deles que assumem o papel de motor da transformação e dão um verniz modernizante em diversos departamentos da vida”, explica o cientista político Felipe Nunes, CEO da Quaest e autor do livro.
Um recorte do levantamento, feito com exclusividade para VEJA, mostra diferenças entre a forma como elas se percebem no mundo e como eles as enxergam. À indagação sobre se o marido deve ser o principal provedor do lar, 69% dos homens dizem que concordam, 10 pontos percentuais acima das mulheres, que vêm mudando rapidamente o seu olhar (veja o quadro). No batente do dia a dia, eis um dado novo e surpreendente: em quase metade das famílias elas já contribuem com a maior fatia da renda, não importa a classe social nem se são casadas ou solteiras. É um feito notável, que resulta de uma extenuante caminhada na qual demarcam espaço no mercado de trabalho: em meio século, a banda feminina, que ocupava 29% das vagas, passou a responder por 49%. O marco histórico não elimina o fato de ainda ganharem 21% menos do que os homens e serem minoria no comando, justamente aí uma das razões que, de acordo com a pesquisa, as faz ir à luta por mais protagonismo. No ritmo atual de evolução, parece uma questão de tempo.
Uma das trilhas que elas vêm desbravando é a do empreendedorismo, que para muitas se amolda melhor à vida com filhos. A atual aferição mostra que 81% delas (versus 84% deles) cogitam partir para um negócio próprio, o que pode fazer girar a roda da economia e da inovação de forma decisiva. Na última década, o grupo de mulheres que aposta nesta raia expandiu-se 42%, compondo um respeitável contingente superior a 10 milhões de pessoas. As engrenagens da sociedade que ainda acumulam bolor por vezes trabalham contra elas, que felizmente engolem cada vez menos narizes torcidos. “As que são assertivas não raro são vistas como brigonas, metidas e de personalidade complicada”, constata Renata Malheiros, especialista em empreendedorismo feminino do Sebrae. Mas, como não aturam mais desaforo como no passado, estão se movimentando para sacudir o cenário, muitas vezes com sucesso. Em 2019, a arquiteta Elisa Rosenthal, 44 anos, fundou um grupo feminino com o objetivo de aumentar a participação delas no setor imobiliário, em que eles tradicionalmente predominam. Muitas piadinhas depois, a mesa virou. “Fizemos uma pesquisa revelando que as mulheres são quem mais influenciam na compra de um imóvel e que a empresa que não olha para isso deixa dinheiro para trás”, conta, orgulhosa.
A cabeça feminina vem experimentando mudanças radicais, segundo reforça a pesquisa da Quaest. Apesar de as gerações mais velhas ainda prezarem itens da cartilha que seus pais e avós professavam, 62% dizem não seguir “normas tradicionais de feminilidade”, como alimentar o desejo de ter filhos, algo que gradativamente deixa de ser um destino inescapável: 67% já reconhecem que não é preciso exercer a maternidade para alcançar a realização. Quanto mais jovem a amostra, é naturalmente maior a probabilidade de se desviarem do roteiro que todas tentavam seguir em algum grau. “Faço questão de ser uma mulher independente”, afirma Anabella Léccas, 24 anos, recém-formada em relações públicas, que peleja para conquistar lugar ao sol na área da comunicação esportiva, um desses ambientes em que o machismo se pronuncia de forma mais audível. Fruto da união de um jogador de futebol com uma dona de casa, ela observou a dureza que foi para a mãe, depois de separada, se posicionar no mercado, chegando ao cargo de administradora de uma clínica médica. “Me tornei progressista porque minha mãe não queria por nada que eu repetisse a história dela”, diz Anabella.
De passo em passo, posturas como essa irão impactar profundamente a força produtiva brasileira. Como as mulheres vivem mais do que os homens (a diferença é de 6,6 anos), são elas que tomarão as rédeas da chamada economia prateada, movida por gente dos 50 anos em diante. “As pessoas vão passar cada vez mais tempo na ativa, configurando um novo bônus demográfico decorrente sobretudo da longevidade feminina”, observa o demógrafo José Eustáquio Alves. Hoje, elas já são mais numerosas, superando-os em 6 milhões, e exibem maior escolaridade, com 29% donas de diplomas de ensino superior, ante 17% dos homens. É algo merecedor de aplausos, especialmente diante da base tão mais desfavorável de onde partiram, mas ainda insuficiente para equilibrar os pratos da balança. Nos últimos dias, a face mais cruel do machismo veio à tona com uma sucessão de casos de feminicídio, um mal que vem tristemente escalando no país.
Um ponto ressaltado na pesquisa é o peso que recai sobre o ombro das mulheres diante de uma realidade delineada pela demografia deste século XXI: um batalhão delas se espreme entre o trabalho e o cuidado dos filhos e agora dos pais, que têm vida mais longa — uma sobrecarga invisível que contribui para o cansaço que elas expressam. Mãe de uma menina que ainda não completou 2 anos, a funcionária pública Mariana Leal, 42, se divide entre as três tarefas, dedicando especial atenção ao pai, com doença crônica nos rins. “Meu nível de estresse é altíssimo; sonho com um fim de semana só para mim”, desabafa ela, longe de ser voz solitária.
É verdade que as atuais gerações pegaram a corrida pela metade, com conquistas extraordinárias acumuladas ao longo do tempo, incluindo aí o direito ao voto, na década de 1930, o ingresso no universo do trabalho, no período pós-Segunda Guerra, e a briga pela liberdade sexual que se seguiu. “Antes, havia um movimento de mulheres, e agora assistimos às mulheres em movimento”, afirma Rosiska Darcy, imortal da Academia Brasileira de Letras que se dedica ao tema do feminismo. Os especialistas lembram que, conforme elas se tornam mais livres e progressistas, eles são postos na posição de refletir sobre seu próprio papel e se revelam mais conservadores. Na silenciosa revolução pé no chão que lideram, as mulheres trazem à baila assuntos como equiparação salarial, flexibilização da jornada e escola em tempo integral. Outro tópico em alta do qual mais elas do que eles tratam é a violência, que faz com que mais de 60% levem uma vida mais caseira, atentas à segurança da prole. “São todos pontos que as afetam diretamente e que elas estão puxando para o debate político”, diz Felipe Nunes, da Quaest. Ao encampar tais demandas, as mulheres estão plantando um futuro melhor não apenas para si, mas para todos à sua volta.
Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2025, edição nº 2973

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