Alguns anos, na aventura da civilização, estão atrelados a movimentações tectônicas em torno das quais se erguem muralhas metafóricas do antes e do depois. Em 1968 — aquele que não terminou, na definição do jornalista Zuenir Ventura — o mundo parou para ver, ouvir e dar passagem aos estudantes de Paris, a Caetano e Gil, mas também aos assassinatos de Martin Luther King e Bobby Kennedy, além dos horrores da Guerra do Vietnã e da ditadura no Brasil. Em 1989, foi-se o Muro de Berlim, numa sucessão de derrocadas políticas nos países comunistas do Leste Europeu de tirar o fôlego — e de fazer Lenin se revirar no mausoléu da Praça Vermelha. Mas houve também um ano miraculoso na moda, o fechar de cortinas do que morreu de velho e a abertura da avenida que culminaria no vale-tudo de hoje. Foi em 1997, tema de uma exposição no Le Palais Galliera, em Paris (e onde mais poderia ser?). A mostra 1997 — Fashion Big Bang é a perfeita tradução do que o título informa: a explosão primordial nas passarelas e revistas, o reinício de tudo.
Mas, afinal de contas, o que ocorreu naqueles doze meses infindáveis — e por que naquele exato momento? A Comme des Garçons explodiu com os corpos desconstruídos e geométricos desenhados por Rei Kawakubo. O britânico John Galliano, contratado pela venerada Dior, bagunçou o coreto do classicismo — e, corajoso e visionário, pôs modelos negras para vestir seus cortes. Foi acusado de racismo, mas o que alinhavou era o oposto. O francês Jean-Paul Gaultier deu um chega para lá no minimalismo e na austeridade, com cores e linhas novidadeiras. Seu conterrâneo, Thierry Mugler, impregnado de sensualidade teatral, seguiu a mesma estrada. Ah, e teve ainda o charme a um só tempo delicado e iconoclasta da baguette, a bolsinha da Fendi preferida da personagem de Sarah Jessica Parker em Sex in The City.
Não sobraria pedra sobre pedra. Em 1919, o pretinho básico de Coco Chanel inaugurou uma era. Em 1947, o New Look de Christian Dior reinventou a mulher. Eram pontos fora da curva. “Historicamente, os grandes anos para a moda foram ligados a um único evento”, diz Alexandre Samson, curador da exposição parisiense. “Mas 1997 teve pelo menos cinquenta momentos explosivos.” Tudo isso embebido do drama pelo assassinato de Gianni Versace, em julho, e a morte da princesa Diana, ícone fashion inescapável, em agosto.
É um engano, contudo, imaginar que 1997 tenha sido apenas um varal no qual se penduraram belezas aleatórias. Havia uma revolução em curso. Era uma resposta à crise econômica da qual o mundo ocidental saía, depois de anos de recessão. A criatividade foi costurada com avanços industriais — e o que soava estranho e espantoso nos desfiles começou a entrar nas linhas de montagem e dali foi para as ruas. “A explosão de talento daquele tempo pavimentou a moda contemporânea”, diz Miren Arzalluz, diretora do Palais Galliera.
A moda é manifesto, caminha de mãos dadas com a sociedade, distante da futilidade. É um retrato de seu tempo. Parece mágica de Harry Potter — cujo primeiro livro da saga, aliás, foi lançado em 1997 —, mas não é. A variedade impulsionada pela vontade de reinvenção, um basta à chatice incolor, ecoava, no fim dos anos 1990, uma das máximas do bom frasista Gaultier: “É lindo ser o que você é”. É mesmo.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832