O fenômeno silencioso dos que optam por não seguir religião alguma
Os 'desigrejados' são cada vez mais numerosos, sobretudo entre os jovens — o que não quer dizer que não tenham fé
Pai da sociologia moderna, o francês Émile Durkheim (1858-1917) dedicou boa parte de seus estudos a analisar as religiões, às quais atribui haver concebido “tudo o que há de essencial na sociedade”. Ao estabelecer a distinção entre sagrado e profano e definir rituais, costumes e objetos relacionados ao divino, diz Durkheim, elas criaram os códigos que regeram os acordos da vida em coletividade, forjaram comportamentos e solidificaram a própria noção de certo e errado. “Religião não é somente um sistema de ideias. Antes de tudo, é um sistema de forças”, concluiu. Assim a humanidade caminhou durante séculos, enlaçada aos dogmas de uma ou outra igreja, até poderes mais altos se levantarem e esgarçarem nós que pareciam indestrutíveis. Neste multifacetado século XXI, regido pela tecnologia e pelo consumo, saturado pelo desencanto com ideias estabelecidas e tomado pelas escolhas individuais, cada vez mais pessoas se dispõem a declarar que, ao contrário de seus país, avós e bisavós, não seguem religião alguma.
É um fenômeno silencioso, ainda pouco evidente no cotidiano e mais comum entre os jovens — de repercussão nas próximas gerações, portanto —, mas não faltam pesquisas para comprová-lo. Na mais recente e ampla delas, divulgada pela Universidade Cristã do Arizona, os entrevistados, na faixa dos 20 aos 37 anos, deixaram clara sua indiferença em relação aos assuntos religiosos. Das 600 pessoas ouvidas, impressionantes 27% disseram não se identificar com nenhuma denominação. Em relação a Deus, 41% se encaixaram na categoria do “não”: não acreditam, não sabem se existe ou simplesmente não “ligam a mínima”. Metade pôs em dúvida a relevância da fé, argumentando que cada um faz a própria vida, e apenas 6% puseram a Bíblia no centro de sua visão do mundo. Curiosamente, a grande maioria — 65% — continua a se definir como cristã, o que aponta para a permanência na crença em um ser superior, apesar da deterioração da confiança nas igrejas estabelecidas. “Os jovens adultos de hoje preferem ter fé em si próprios”, observa George Barna, responsável pelo levantamento.
Duvidar e se afastar — em suma, tornar-se um “desigrejado” — são atitudes que proliferam também entre os brasileiros. Segundo o IBGE, o contingente que se define como sem religião pulou de 0,8% em 1970 para 8% — dez vezes mais — em 2010, o último dado disponível. E o grupo segue se expandindo: em pesquisa do Datafolha publicada em 2020, a parcela havia avançado para os 10%. “Essa mudança está ligada ao aumento da diversidade e das opções de cada um. Até pouco tempo atrás, o catolicismo moldava a sociedade brasileira porque ela era estática, reunida em torno da família nuclear”, explica Eustáquio Alves, doutor em demografia e ex-pesquisador do IBGE. E não há papa pop, categoria em que Francisco se encaixa perfeitamente, que consiga reverter a tendência. Católico fervoroso, do tipo que rezava em voz alta, o roteirista Ian Perlungieri, 27 anos, conta que sua fé entrou em crise na adolescência. “Perguntei: Deus, o senhor existe? A falta de resposta me fez questionar cada vez mais o que aprendia no colégio católico”, relata Perlungieri, que se declara ateu.
Temas que fazem parte da vida dos jovens e são muito mais aceitos por eles, como questões de gênero, sexualidade, aborto, feminismo e raça, estão justamente entre os que se chocam com as doutrinas religiosas — e, no embate, a crença sai perdendo. “As novas gerações são as mais inclusivas da história. Faz parte do seu DNA questionar princípios arcaicos e lutar por seus direitos”, aponta o teólogo Rodolfo Capler, da Universidade de São Paulo. A produtora cearense Beatriz Azevedo, 23 anos, é bissexual e se sentiu incomodada, tanto na sua família católica quanto no grupo de jovens que frequentava. “Me sentia muito mal porque, naquele universo conservador e cheio de tabus, era como se vivesse em constante pecado”, diz Beatriz, que deixou a Igreja Católica no final da adolescência, após um longo período de conflito interno.
Não ter religião definida, como mostrou a pesquisa americana, não significa abandonar a fé e a espiritualidade, fato confirmado pela quantidade bem menor de ateus (embora também eles estejam se multiplicando). A WIN/Gallup entrevistou 66 000 pessoas em 68 países sobre o assunto e, enquanto espantosos 25% se declararam sem religião, apenas 9% disseram não acreditar em Deus. Entre os “desigrejados”, muita gente já transitou por diversas denominações, sem se apegar a nenhuma. Filho de pais católicos, o ator paraense Jordan Navegantes, 22 anos, foi criado pela avó adventista e não segue nenhuma religião, embora a fé continue presente em sua vida. “Acredito muito no Deus cristão, mas já frequentei terreiro de candomblé e tenho devoção aos orixás”, revela. Também fazem parte do clube jovens criados no meio dos “católicos não praticantes”, expressão que se situa a um milímetro dos “sem religião”, só que era mais palatável aos olhos da sociedade de antigamente. “O processo de pluralização religiosa tem sido muito mais intenso do que o de secularização da sociedade. Isso fez com que o católico que se dizia não praticante se sentisse mais à vontade para admitir que não tem religião”, ressalta Ronaldo Almeida, professor de antropologia da Unicamp.
O catolicismo conviveu com outras crenças no Brasil sem perder a majestade até um século atrás, quando chegaram os primeiros imigrantes protestantes e, com eles, o ímpeto da evangelização e da conversão. Nos anos 1970, a proliferação das igrejas neopentecostais começou a causar um impacto tão forte no rebanho católico que, segundo as previsões, em dez anos os evangélicos serão maioria no país. A inesperada expansão dos sem religião, no entanto, é sentida em ambas as arenas religiosas: enquanto a soma de católicos e evangélicos perdeu 10 pontos porcentuais entre 1970 e 2010, a dos “desigrejados” subiu mais de 7%. Para a juventude deste século, crer sem ver é questão de foro íntimo, que dispensa culto, missa, padre e pastor.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788